Mais do que uma crise política
Estamos a viver a pior crise sanitária da nossa história recente. A crise económica já é muito grave e será de uma dimensão ainda impossível de calcular, mas seguramente devastadora. A crise social terá o potencial de abanar os alicerces da comunidade. Só faltava mesmo uma crise política para potenciar e amplificar as outras.
Num dos períodos da nossa história em que mais precisávamos de estabilidade, eis-nos mergulhados também numa crise política. Ficou formalizada esta semana, mas já estava escrita.
O Governo teve o mais importante instrumento político, o Orçamento do Estado, nem aprovado nem reprovado. É fácil de prever que existirá um conjunto de normas propostas pelo Governo que serão chumbadas na especialidade e outras que serão acrescentadas pela oposição contra as posições do Governo. Resumindo, na prática, só saberemos que Orçamento vamos ter quando dessas votações, e falta perceber se o que sobrar do apresentado chegará para que o Governo o considere executável.
Todo este problema com a aprovação do Orçamento parte de uma premissa básica: pensar-se que um país pode ser governado debaixo de uma crise destas sem um apoio maioritário na Assembleia da República devidamente formalizado. Isto seria o mínimo dos mínimos. O normal e mais do que aconselhável seria os partidos de uma área política maioritária não só se comprometerem por escrito nas principais medidas, como todos terem presença no executivo.
Se já num mundo em situação normal é quase impossível governar sem um apoio maioritário no Parlamento - como a história da nossa democracia prova à saciedade -, o que será nas circunstâncias em que vivemos e vamos viver nos próximos tempos. É de uma inconsciência total.
Já aqui o repeti muitas vezes, são muito poucos os pontos de convergência doutrinária e programática entre o PS e o Bloco de Esquerda. Uma aliança teria sempre algo de contranatura, mas foram os bloquistas que aceitaram tudo o que não aceitam agora e em circunstâncias bem mais simpáticas para o país. Chega bem lembrar que o BE aprovou os Orçamentos que validavam a torrente de dinheiro para o Novo Banco e que respeitavam o Tratado Orçamental. Agora o que vai para o banco é o que os bloquistas já aprovaram nos anos anteriores, e os limites do défice não têm de respeitar o dito Tratado.
Fica transparente que o que movia o BE quando da geringonça era uma simples questão de poder, e por isso conviveram com medidas que pelos vistos eram contra a sua consciência. Como também é evidente que agora não alinham com o PS porque sabem que o próximo ciclo vai ser muito complicado e querem capitalizar o descontentamento. Para chumbar o Orçamento, qualquer desculpa serviria.
Se parece claro que houve mais falta de vontade do BE do que do PS em fazer acordos, sequer, mínimos que sustentassem a governação, culminando no chumbo do Orçamento, convém lembrar a responsabilidade dos socialistas na criação do clima de falta de cooperação entre os dois partidos. O facto é que o PS achou, no princípio da legislatura, que tinha chegado a altura de conquistar parte do eleitorado do BE. Não olhou para a realidade partidária e a sua evolução e deslumbrou-se. Maiorias absolutas em Portugal sempre foram uma anomalia e cada vez mais difíceis serão.
Estamos numa circunstância em que a proliferação de forças políticas com presença parlamentar obriga a acordos para que haja o mínimo de governabilidade. Se no lado direito é a natureza de uma das forças que impede acordos, parecia que do lado esquerdo eram possíveis (esta divisão esquerda/direita, não me canso de o dizer, já sem sentido também é um obstáculo). Não são, pelo menos com o BE, ficou claro.
Os sinais que chegam da negociação deste Orçamento não foram bons e a crise política que se está a instalar não será só grave pelo momento em que vai acontecer, terá consequências na forma como os cidadãos olham para os partidos e para a política. As pessoas terão muita dificuldade em discernir quem está ou não a fazer os possíveis para que se chegue a entendimentos, e isso fará que ponham em causa todo o sistema.
Todos os partidos são chamados à responsabilidade de fazerem compromissos, de negociar, de transigir.
Sem medo das palavras, no mundo em que vamos viver, o nosso regime está dependente disso.