A América é um filme de Hollywood, daqueles mesmo muito bons
Cheguei numa tarde de finais de outubro de 2000 a Hope, Arkansas, num daqueles autocarros metalizados da Greyhound, com o galgo desenhado, que nos habituámos a ver nos filmes passados na América profunda. E sim, estava no Deep South, o sul profundo, e sim, sentia-me numa película de Hollywood. Ali tinha nascido Bill Clinton, que estava então de saída da Casa Branca, ali havia ainda memória da mercearia dos avós, ali se encontrava ainda quem se recordava das bolsas de estudo ganhas pelo menino-prodígio que se fez advogado em Yale, regressou ao Arkansas para ser governador e só voltou a sair do estado natal para ser presidente dos Estados Unidos. O sonho americano existe mesmo e ver como começou naquele caso era o objetivo da reportagem para o DN, na primeira de duas eleições presidenciais que cobri ao serviço do jornal e em que a regra foi evitar Washington.
O ambiente de filme começou logo na bomba de gasolina que servia de estação rodoviária e prosseguiu no táxi que partilhei com uma velhinha, com o acordo prévio de ser a casa dela a primeira paragem antes de seguirmos para o hotel. Quem viu Driving Miss Daisy, com Jessica Tandy e Morgan Freeman, pode imaginar a conversa no açucarado sotaque local a que assisti. Não era época de grandes tensões raciais, e Clinton até era chamado de "o primeiro presidente negro da América" pela escritora Tony Morrison (faltavam uns anitos para a eleição de Barack Obama). Para não aborrecer mais com a sensação de ser intruso num qualquer filme, que afeta muitos que visitam os Estados Unidos e sobretudo os estreantes em Nova Iorque, acrescento só que à hora de jantar, e vindo eu do Texas, pedi no Best Western um T-bone e uma Budweiser, para ouvir como resposta, ao mesmo tempo que o bife era posto no prato, um "dry county". Naquele recanto da América a Lei Seca não era uma coisa do passado, portanto, nada de cervejas.
Falo de Hope como podia falar de Waxhaw, território das Carolinas onde Andrew Jackson foi criado por pais imigrantes irlandeses, ou de Hodgenville, no Kentucky, onde Abraham Lincoln nasceu numa cabana de madeira. Afinal, nem todos os presidentes dos Estados Unidos foram milionários como George Washington, John Kennedy ou agora Donald Trump. A democracia americana nestes últimos dois séculos e meio (em 2026 celebram-se 250 anos da Declaração de Independência) tem-se mostrado capaz de uma mobilidade social incomparável mesmo com a da Europa. E o sonho americano concretiza-se muitas vezes pela ascensão dos imigrantes e dos seus filhos, mas também por figuras como o jovem Clinton, órfão de pai e com uma mãe longe a estudar para enfermeira, criado numa cidadezinha do Arkansas (ainda hoje Hope só tem 17 mil habitantes) por um avô e avó pequenos comerciantes. É uma experiência interessante ouvir o próprio Clinton a ler na versão audiobook a sua autobiografia, em especial estes seus primeiros anos de vida, marcados pela morte precoce do pai e a ausência da mãe. Não disfarçou a emoção.
Pagam poucos impostos os americanos, e o governo, sobretudo quando o Partido Republicano está no poder, ainda parece querer cobrar menos e logo aos mais ricos. O resultado é a fraqueza do Estado social, na educação disfarçado nas estatísticas pelas universidades de excelência e na saúde nem sequer isso pelos gastos astronómicos nos privados. Existe uma aversão à intervenção governamental difícil de entender pelos europeus, e que resulta em extremos como a impopularidade do Obamacare ou das medidas para controlar a posse de armas. Mas por outro lado sobressai uma generosidade particular bem mais comum que do lado de cá do Atlântico, filantropos em grande escala como Bill Gates ou Warren Buffet, também em pequena escala como os que garantiram que William Jefferson Blythe (Clinton é o nome do padrasto) não se ficava por Hope, terra que antes de ele ser presidente só tinha fama pelas melancias gigantes.
Serve esta chamada de atenção para Bill Clinton como encarnação do sonho americano para dizer o quanto admiro os Estados Unidos, malgrado os defeitos. É um país cheio de contradições desde o nascimento: Thomas Jefferson escreveu que todos os homens nascem iguais mas conviveu bem com a escravatura; James Monroe insurgiu-se contra os planos europeus de recolonizar a América Latina mas a doutrina que ganhou o seu nome serviu para os marines invadirem uma série de países das Caraíbas; Harry Truman, Dwight Eisenhower e John Kennedy proclamaram-se campeões da democracia sem deixar de apoiar ditadores; os americanos são filhos, netos, bisnetos e trinetos de imigrantes e porém muitos defendem erguer muros; o país tem dos melhores cientistas do mundo e no entanto não falta quem queira proibir ensinar nas escolas as teorias de Charles Darwin e substituí-las pelo criacionismo. Um dia um professor americano que tive explicou-me que uma primeira tentativa de entender o país era perceber que são pelo menos três: Nova Iorque, a Califórnia e o resto. Também acrescentou que estava a simplificar.
Olhemos pois para as presidenciais desta terça-feira, 3 de novembro. Nova Iorque votará em Joe Biden, a Califórnia também, o resto dividir-se-á entre o candidato democrata e Trump. Ou seja, o resultado depende desse resto, de estados como a Florida, a Pensilvânia, o Ohio, o Arizona ou o Texas. E até pode acontecer que o presidente seja reeleito, mas o imenso resto está em mudança acelerada. Nas últimas sete eleições presidenciais, os republicanos só ganharam uma vez no voto popular (em 2004, George W. Bush contra John Kerry e assisti à festa republicana em Austin). O sistema eleitoral, pensado para dar peso aos pequenos estados, favorece neste momento o candidato republicano, que já em 2016 obteve menos três milhões de votos do que a rival mas mesmo assim ganhou - dentro das regras, reafirmo. Mas a demografia joga a favor dos democratas, muito fortes entre as minorias (negros, hispânicos e asiáticos) que caminham para, somadas, ultrapassar a população branca. Neste ano algumas sondagens até dão o Texas a votar Biden, o que é extraordinário, pois o último democrata a ganhar ali foi Jimmy Carter em 1976. Recordo-me de em 2004 olhar para o mapa dos resultados no Dallas Morning News e ver que por entre uma multidão de quadradinhos vermelhos (republicanos) só um azul (democratas), o condado de Travis, onde fica Austin, a capital, uma cidade universitária. Além do peso das minorias, também o aumento das profissões ligadas às novas tecnologias em certas zonas urbanas e em estados-chave reforça o favorito eleitoral a médio prazo dos democratas.
Trump, porém, está longe de poder ser dado como derrotado. Sabe-se que há um voto escondido (que escapa aos institutos de sondagens) que lhe pertence. Votos de gente que se identifica com o estilo do presidente, o mais inexperiente da história americana se pensarmos que nunca teve um cargo político ou militar antes de chegar à Casa Branca. O magnata do imobiliário, nova-iorquino em tempos democrata, tornou-se o improvável líder da América que resiste ao multiculturalismo e à globalização. Não porque tenha respostas para as angústias daqueles que veem o seu modo de vida ameaçado a sério (fábricas fechadas) ou em teoria (gente nova nas redondezas), mas porque lhes disse que os ouvia, que os compreendia. Biden tem sido sábio em dar mais atenção aos chamados colarinhos azuis, o operariado branco, do que fez Hillary Clinton há quatro anos. Muitos luso-americanos que conheci em em New Bedford me fizeram esse alerta, o risco de os democratas ficaram reféns das causas identitárias.
Não tenho dúvidas de que a democracia americana sobreviverá a mais quatro anos de Trump mas o desafio verdadeiro é como esta democracia lidará com o mais importante legado do presidente cessante: os três juízes conservadores que foram nomeados nos últimos quatro anos para o Supremo Tribunal, e que vão afetar durante décadas a interpretação da Constituição, muito provavelmente num sentido contrário ao sentimento da maioria dos americanos, não só as minorias, como os jovens, as mulheres, as camadas urbanas com educação universitária.
Volto atrás 20 anos, tal como comecei. Dias depois de regressar dos Estados Unidos, com a polémica se o vencedor era George W. Bush ou Al Gore a fazerem-me ir ainda à Florida, defendi uma tese de mestrado em Estudos Americanos em que comparava Louis Farrakhan e Colin Powell e a situação dos negros americanos. Nas conclusões fui muito moderadamente otimista. Depois, em 2008, Obama foi eleito presidente dos Estados Unidos. Eis uma sociedade, um país, capaz de se reinventar, de surpreender sempre. Se fosse um filme de Hollywood, e é, era daqueles mesmo muito bons.