Brexit. A vacina para uma União Europeia mais coesa

O Reino Unido vai sofrer o impacto da saída do clube europeu. Os 27 também perdem no imediato, mas os ganhos futuros podem largamente compensar a dor de cabeça que representou o Brexit e, em certa medida, a presença do Reino Unido em Bruxelas.
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Fecha-se uma porta, abre-se uma janela. No mesmo dia em que o presidente do Conselho e a presidente da Comissão assinaram o acordo comercial e de cooperação com o Reino Unido, Charles Michel e Ursula von der Leyen estiveram à conversa com o líder chinês Xi Jinping para selarem um acordo de princípios sobre investimentos. Despachado para Downing Street num avião da Força Aérea britânica, o documento de 1246 páginas foi o resultado de mais de nove meses e meio de negociações, embora seja mais o início de um quadro dinâmico de constantes negociações nas mais diversas áreas do que um acordo "pronto para ir ao forno" como prometera o primeiro-ministro britânico Boris Johnson.

Resultado de sete anos de conversações, o acordo de investimentos sino-europeu, a concretizar-se em letra da lei, irá permitir às empresas europeias maior acesso ao mercado chinês e acabar com as transferências forçadas de tecnologia, e com Pequim a comprometer-se a adotar as regras laborais da Organização Mundial do Trabalho, incluindo as respeitantes ao trabalho forçado. Prova das idiossincrasias da arquitetura europeia, à videoconferência entre os dirigentes belga, alemã e chinês seguiu-se outra entre Xi e a chanceler alemã Angela Merkel e o presidente francês Emmanuel Macron.

Na véspera de Natal, ao comentar o acordo obtido com Londres, Von der Leyen citou o poeta inglês T.S. Eliot: "Aquilo a que chamamos começo é muitas vezes o fim / E criar um fim é criar um começo." Se é ponto assente que a partir das 23h00 de Lisboa desta quinta-feira os britânicos passam a ser cidadãos de um estado terceiro, sem acesso ao mercado comum nem à união aduaneira (exceto a Irlanda do Norte) e à liberdade de movimento numa saída inédita de uma organização em expansão contínua até 2013, com a entrada da Croácia, em que ponto do "fim" e do "começo" fica a União Europeia?

Não há como negar que o clube europeu encolhe: em população perdeu 13%, ou menos 66 milhões; no campo diplomático fica sem um dos dois assentos permanentes no Conselho de Segurança das Nações Unidas e sem um interlocutor privilegiado com Washington e alguns países da Commonwealth; em poder militar fica sem o quarto maior exército da UE-28 em número de militares no ativo, mas com capacidades militares de topo no contexto europeu, caso dos dois porta-aviões e das ogivas nucleares. Neste campo essa perda é teórica, uma vez que a defesa comum da maior parte dos estados da UE se rege pela Aliança Atlântica.

Já a fatia de 15% do PIB geral que o Reino Unido representava nos números globais da UE - a segunda maior economia do bloco - nada tem de teórico, até porque era um contribuinte líquido para o orçamento. Os europeus do continente perdem ainda as facilidades de viajar, trabalhar ou estudar (com o programa Erasmus à cabeça) que gozavam até agora em terras britânicas. Um tema espinhoso e que fez parte da retórica da campanha do Brexit, o retomar o controlo da zona económica exclusiva britânica, teve como desfecho uma ampla cedência de Londres, mas ainda assim as frotas pesqueiras vão capturar menos um quarto da sua quota nas águas territoriais britânicas, de forma gradual, nos próximos cinco anos e meio.

A saída do centro financeiro de Londres, um dos mais importantes do mundo, do espaço comum, aliada ao facto de o acordo nada prever de específico em matéria de serviços financeiros, abre oportunidades a cidades como Paris, Amesterdão e Frankfurt em concorrerem com a capital inglesa e de se estabelecerem como o centro financeiro europeu.

Em termos políticos concretiza-se o desabafo do primeiro-ministro grego Andreas Papandreou em 1984, quando disse que "seria um grande alívio" se os britânicos saíssem da Comunidade Económica Europeia. Hoje como ontem outros fenómenos nacionalistas e populistas ameaçam a política europeia, que se tinha baseado na construção de consensos. Se antes houve movimentos eurocéticos em França e Itália, a ameaça teórica de algum outro Estado membro seguir o trilho britânico centrou-se na Polónia e na Hungria, cujos governos seguem em contramão no que respeita aos princípios do Estado de direito. Mas os efeitos negativos do Brexit vão servir como vacina para os dirigentes que se sintam tentados pela aventura isolacionista. Até porque no dossiê das negociações é reconhecido que os 27 mantiveram uma posição comum e solidária com a Irlanda.

A esta coesão junte-se a forma eficaz como a Comissão de Von der Leyen respondeu à crise sanitária nos últimos meses, depois de um desconcerto inicial, e fica no ar a perspetiva de uma governação mais pragmática e com menos atritos, beneficiando do entendimento entre Paris e Berlim. Por outro lado, a zona euro ganha ainda mais importância, abrangendo 342 milhões dos 448 milhões de cidadãos da UE.

Uma vez consumado o divórcio é possível que as relações bilaterais entre Londres e Bruxelas melhorem. É sabido que o Reino Unido foi desde o primeiro momento da adesão à Comunidade Económica Europeia um membro desconfiado das virtudes da construção europeia para lá dos acordos comerciais. Recuperada a soberania de quase todo o território, sem as restrições jurídicas e políticas que tanto engulho causaram a parte da classe política britânica, a cooperação entre o canal da Mancha pode atingir níveis nunca antes experimentados, em dossiês relativos às alterações climáticas, segurança ou energia.

Consequência de um Brexit não desejado pela maioria da população, como ficou expresso no referendo de 2016, a Escócia e a Irlanda do Norte podem vir a sair da união britânica. No caso escocês, o governo da nacionalista Nicola Sturgeon reivindicou a realização de novo referendo sobre a independência. As eleições previstas para maio, que deverão dar nova maioria ao SNP, serão o catalisador para uma população que, há 17 sondagens seguidas, aprofunda o sentimento independentista. As declarações de Boris Johnson de que os poderes autonómicos concedidos à Escócia foram "um desastre" caíram muito mal.

Na Irlanda do Norte, no ano em que se comemora o centenário da província, os nacionalistas esperam que a Escócia abra caminho para o desabar da união. Na República da Irlanda os líderes do governo de coligação dizem que antes de 2025 não deve haver lugar ao referendo de unificação, previsto do Acordo de Sexta-Feira Santa.

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