A Fabula Urbis fecha com 2020 e com ela as histórias de Lisboa
João Pimentel é professor, músico, livreiro e editor, mas sobretudo um amante de livros. Uma paixão partilhada com a mulher, Carmo Gregório. Moram na zona do Castelo, com vista para o Tejo, e tinham como vizinhos uma marcenaria. A oficina fechou, falaram com a senhoria e transformaram o espaço na Fabula Urbis, um nome universal, em latim e que para o casal significa "histórias de Lisboa". É muito mais do que uma livraria, muito mais do que um negócio. Mas uma coisa é não ganhar dinheiro e outra é acumular dívidas. Esta quinta-feira é o último dia em que estará aberta ao público. "Não faz falta a Lisboa." É a conclusão que tira João Pimentel. Sem arrependimentos.
"As livrarias que fazem falta não fecham", responde muito cruamente à pergunta sobre a importância da Fabula Urbis para o estudo da cidade de Lisboa. Mesmo que a maioria dos seus três mil títulos sejam raridades; mesmo que muitos investigadores e historiadores a tenham como lugar de passagem obrigatório; mesmo que tenham ajudado muitos a construir as bibliografias das teses; mesmo que, quem goste de Lisboa e dos autores portugueses, dificilmente de lá saia sem um livro. E está num espaço magnífico, quase conto de fadas, onde também se assistiram a muitos recitais e se ouviram muitas histórias.
Todas aquelas razões são suficientes para que não exista ressentimentos no momento de fechar as portas. "Disse à minha mulher: mais vale uma pessoa arrepender-se por fazer do que se arrepender por não fazer, o que não fazemos não podemos recuperar", diz João Pimentel.
Foi nos finais de 2006 que decidiram abrir a livraria mesmo ao lado de casa, não imaginavam que estivessem próximos de enfrentar uma crise financeira. Mas a Fabula Urbis resistiu, inicialmente com clientes portugueses, professores, universitários, colecionadores de títulos olisiponenses. "As pessoas foram ficando velhas e as casas de hoje não têm espaços para livros." Já não resistiu à crise sanitária causada pela pandemia.
João Pimentel tem 63 anos e é professor de História. Quando abriu a livraria foi na perspetiva de esta ser um projeto para a reforma, mas a lei mudou e continua a dar aulas no ensino secundário. Carmo Gregória tem 61 anos e é assessora científica do Conselho Nacional de Educação. Dividiram a gestão do espaço, também a concretização de muitas iniciativas culturais. Fecham com a noção de dever cumprido. Sem lágrimas, apenas com uma triste constatação: não há compradores.
O cliente interessado na literatura e nos estudos sobre Lisboa deixou de aparecer. Foram substituídos por curiosos, turistas, às vezes só porque a livraria era referenciada nos guias. Mas. além dos livros sobre Lisboa, divulgavam autores portugueses e em várias línguas. Fernando Pessoa é o autor mais requisitado, João Pimentel percebeu, também, que há estrangeiros que compram um livro na língua do país que visitam. Percebeu isso com O Principezinho, mais recentemente trocado por edições em português do Harry Potter.
Com o SARS-CoV-2, veio o primeiro estado de emergência e fecharam. Reabriram por altura do verão, mas mantiveram-se os dias sem clientes. Sem receita comercial e o confinamento, também, foi difícil manter a vertente cultural. Programavam recitais de piano que começaram por ser um espaço para um professor amigo cumprir os objetivos didáticos para a sua tese e alargou-se aos estudantes. Depois, foram os alunos de Música que chamaram os professores, também grandes figuras da música. Paralelamente, tinham a parte de exposições, a primeira com fotografias da Lisboa histórica, mais tarde transformados em postais e que, ainda, se vendem. Muitos artistas plásticos expostos, alguns de renome.
Os últimos dias estiveram com promoções de 50%, ainda assim, ficaram muitos títulos nas prateleiras. Pode ser que, nos próximos dias, quem por lá passe possa entrar, uma vez que estão em arrumações. O resto, será vendido ao desbarato.
Mas a editora Fabula Urbis vai manter-se, nem que seja para editar um livro por ano. O último foi o Cancioneiro da Rua, uma compilação de canções de rua dos séculos XVIII e XIX que João Pimentel vinha a fazer desde os anos 1970, quando estudava História. Temas cantados pela soprano Ana Batista e acompanhados à viola clássica por João Pimentel. Com tanto, não pode haver arrependimentos: "Conheci gente muito interessante de todo o mundo e que não teria conhecido se não fosse a livraria. Histórias de vida fantásticas."