Paulo Mendes da Rocha: "A arquitetura é construir a habitabilidade da natureza"
Foi inaugurada na sexta-feira uma exposição sobre duas casas por ele projetadas, ao lado de uma outra exposição - Infinito Vão - sobre os últimos 90 anos da arquitetura brasileira. Prémio Pritzker de 2006, Mendes da Rocha mantém uma encantatória maneira de falar sobre arquitetura, cidade, e até a hipótese de construir no espaço sideral, sem a força da gravidade. Nunca dá a resposta esperada, está sempre a pensar para lá do que os olhos mostram e os ouvidos ouvem, maravilhado ainda com o facto espantoso de um avião nos fazer atravessar o Atlântico em poucas horas - e nós preocupados com a bagagem de mão e a pensar "será que me esqueci dos óculos?" O autor do projeto dos Museu dos Coches e de inúmeras obras feitas sobretudo no Brasil - de pequenas casas até planos de urbanização ou estádios de futebol - está a pensar no próximo trabalho, qualquer coisa ainda apenas esboçada para a Ilhabela, perto de São Paulo. Nasceu em Vitória do Espírito Santo há 90 anos, numa família portuguesa e italiana, filho de um engenheiro que o habituou a visitar as obras. Sempre observador, faz notar que afinal de contas é ele quem está a fazer as perguntas.
Como está hoje a arquitetura brasileira?
A arquitetura é qualquer coisa feita para o futuro, um relato histórico, portanto não sei fazer esse tipo de diagnóstico. Eu faço muitos votos de que venha a ser arquitetura. Quando se diz "arquitetura brasileira" é preciso considerar a dimensão monumental do que seria uma experiência americana da arquitetura, pegar o conhecimento todo dessa civilização chamada ocidental, cristã - que é muito discutível - e transportar para um território de natureza virgem. A graça está sempre nas contradições. Estamos a falar das navegações portuguesas de há 400 anos, e 400 anos na história do homem não é nada, é dar pouco tempo ao tempo. Então você vê a perspetiva de considerar aquele território vazio... veja o que foi feito com o pessoal da costa pacífica - incas, maias, astecas -, tidos como ninguém, uma civilização como se fossem egípcios com pirâmides e construções em pedra, uma cultura extraordinária.
E misteriosa para nós?
Destruíram mas não a viram como misteriosa, algo para desfrutar. Do ponto de vista do tempo histórico, estamos descobrindo o que podemos fazer com as viagens. O que move o homem é a curiosidade. Hoje temos instrumentos mandando notícias dos anéis de Saturno. Esse episódio que foi inaugurado e que nos relaciona dessa maneira, Brasil e Portugal, está ligado a essa curiosidade sobre a dimensão do universo, da nossa presença nele, um mistério insondável. Mas a razão da nossa existência é esse espanto, essa curiosidade. A arquitetura é uma maneira de dizer quem somos, quem seremos, quem fomos. A parte da construção, a técnica, é uma experiência organizada, acumulada, para ser repetida com sucesso... construir uma ponte, um viaduto, uma cisterna, uma janela. A natureza por si não é habitável. Construir a habitabilidade da natureza é a questão da arquitetura, e daí a maravilha da realização idealizada pelo Nuno Sampaio chamada Casa da Arquitetura. É um lugar para um falatório que não vai terminar nunca.
O júri do Prémio Pritzker salientou a sua compreensão profunda do espaço, das várias escalas, da ligação à natureza. É esse o significado da arquitetura?
Sem dúvida.
Não podia imaginar a arquitetura como uma coisa artificial inventada para um outro planeta?
Atualmente, até isso vamos ter de fazer, avançar para os espaços siderais. Há gente a trabalhar numa estação orbital. Não é absurdo dizer que na Casa da Arquitetura já estamos ensaiando, de uma maneira objetiva, a expansão da vida humana no universo. Haja arquitetura! Já imaginou a arquitetura sem a força da gravidade? Vamos dizer com os engenheiros: ponha aqui esta pedra, não lhe mexa porque é a entrada da minha casa...
Estão sempre a falar dos seus pilares, das suas casas suspensas no ar. Já está habituado.
A dança é impossível sem a força da gravidade. O bailarino dá um pulo e entra em órbita. Estamos vivendo momentos de grande loucura, salvos pela exiguidade do tempo de vida de cada indivíduo. Só participamos num pequeno episódio da história mas com a consciência de que estamos participando, com passado e futuro. Essa é a dimensão da ideia de projeção, projeto, arquitetura.
É um curto episódio mas o arquiteto tem uma longa vida de 90 anos.
O curto episódio é infinito, 90 anos na história do homem não é nada.
À nossa dimensão, é uma vida longa e muito preenchida.
Não tenho muita convicção disso. Tenho a impressão de que sou bastante ignorante.
Quanto mais sábio mais ignorante?
Do ponto de vista académico eu seria bem ignorante. Para ultrapassar essa barreira da ignorância, tenho a virtude se ser muito intuitivo. Sou eu quem menos sabe dizer por que diabos fiz assim ou assado. É difícil.
É difícil porquê?
Quando você faz você está dizendo. O seu discurso é o que você constrói.
Como é o passo de criar a primeira ideia do projeto?
Acho que não existe a primeira ideia. O que surge diante de uma peculiaridade qualquer de cada caso, aquele lugar, um determinado programa, é uma convocação de tudo o que você sabe, portanto é uma dimensão indescritível a não ser com a linguagem da própria arquitetura. Tem de construir. Como com qualquer discurso, é difícil explicar depois. É feito para o outro, não para você mesmo - vai ficar, tomara que fique. É a minha presunção de atender bem a sua demanda enquanto jornalista. Eu quero ver o que vocês vão dizer. É um discurso para estabelecer um diálogo. Não se pode negar uma certa satisfação, uma visão erótica da vida, um certo prazer em ver que desperta o interesse do outro. Nessa dimensão, um prémio é uma bela notícia. Não que o prémio interesse, mas é uma notícia: "Olha que estão vendo o que você fez."
Alguma vez esperou ter um prémio como o Pritzker?
Os maiores sucessos de palco muitas vezes foram vaiados no início. Nem sempre o melhor sintoma é um prémio, cuidado.
Em Portugal fez o Museu dos Coches e uma casa na Rua do Quelhas [Lisboa] com [a arquiteta portuguesa] Inês Lobo.
Com a Inês Lobo qualquer um brilha.
Já disse o mesmo em relação à equipa do Museu dos Coches, os arquitetos Ricardo Bak Gordon e Nuno Sampaio, o engenheiro Rui Furtado. Mas a primeira ideia é sua?
Tenho de assumir a responsabilidade: sou eu que faço. Por maior que seja a equipa, eu assumo a responsabilidade. Quem diz "vamos fazer assim e não assado" é quem faz. O mais são acomodações para resolver os problemas que você criou ao dizer que queria fazer assim. Como vamos fazer para que aconteça assim?
Gosta de trabalhar com arquitetos jovens? Pelas experiências em Portugal, têm menos de metade de sua idade.
Sem querer fazer gracinha, atualmente não consigo trabalhar com arquitetos que não sejam mais jovens... está muito difícil. Quem trabalha não tem diferença de idades. Se quatro ou cinco saem para pescar no mesmo barco, são todos iguais.
Como flui essa conversa?
Uma conversa não pode ser prevista antes, se você abre a boca e fala está sempre inaugurando alguma coisa. Por experiência, acaba sabendo como trabalhar em conjunto. Quando as pessoas se engajam para, juntas, fazer a mesma coisa, está sempre certo, se não o navio afunda.
A lista de projetos que fez vai desde casas particulares até planos de urbanização e estádios desportivos. Para cada um olha de uma maneira diferente. O que há em comum?
O que fazemos é sempre, em rigor, o que há em comum. O específico de um projeto é sempre um pretexto para elaborar o discurso mais amplo da transformação da natureza. É uma construção. Não existe nada particular. Se alguém encomenda uma casa você faz sempre o raciocínio atual que os arquitetos todos fazem.
Qual é esse raciocínio?
Você nunca está fazendo uma casa, está sempre fazendo a cidade. Hoje não existe a ideia de uma casa individual, deve estar contida num prédio com várias casas, a concentração necessária para que a cidade possa lucrar das suas grandes virtudes - transporte público, facilidade de comunicação. Estamos sempre a construir a cidade. Para nós, arquitetos, o conceito de espaço já quer dizer público, não existe espaço privado. Se for privado não é espaço. Se você imagina alguma coisa, precisa de publicá-la: ou canta, ou dança, ou escreve uma música, ou faz um equação matemática e explica, mas tem de dizer ao outro para se poder constituir espaço. O espaço privado é a nossa mente. Você precisa publicar, se não você morre sem ninguém poder imaginar o que você pensou. Todas as linguagens - a falada, a escrita, a expressão facial - são modos de publicar o que está na mente. Somos muito pobres como instrumento de comunicação. Pensamos muito mais além, de modo complexo, convocando passado, presente e futuro, o que há e o que não há, convocando o nosso inconsciente, aquilo que está guardado. Basta imaginar que há 25 letras para tudo o que se escreveu na literatura, em várias as línguas. Sete notas musicais para todas as sinfonias. É uma maravilha ou não é? Pobres loucos, nós. Vivemos sempre sobre o fio da navalha. A única graça da vida é justamente essa, porque se a vida fosse tranquila e fácil ninguém suportaria. O pior castigo que se pode dizer a algum de nós é "amanhã não temos nada que fazer". Imediatamente alguém inventa alguma besteira.
Há pouco disse-me que o seu avô era português e acrescentou: "Não há brasileiros a não ser os índios."
Os brasileiros estão sendo configurados agora. Quem é um brasileiro? Um negro, um indígena nativo de um lugar, um português? Em São Paulo está a maior população de japoneses fora do Japão. A minha mãe é italiana, eu sou italiano, português, brasileiro e o diabo que carregue. Ninguém sabe bem.
A sua ligação a Portugal nos últimos anos foi mais intensa do que alguma vez tinha sido?
Sim, sem dúvida. Pessoalmente, fisicamente. O meu pai foi um grande engenheiro, tinha amigos como o famoso engenheiro Artur Rocha. Levava-me com ele e eu ouvia as conversas. Na época, há 80 anos, eles tinham uma ligação estreita com o pessoal de Portugal do cimento armado, que era muito desenvolvido. Eram parceiros do pessoal da Escola Politécnica. Quando o Artur Rocha encontrava o meu pai - ambos especialistas em portos, canais, hidráulicas - e se reportavam a amigos de Portugal sorriam e, imitando o sotaque português, diziam: "Cuidado que essa coisa é muito difícil." Era uma maneira de dizer: lembra que o engenheiro fulano nos disse isso? A minha avó era portuguesa e chamava-se Ana do Espírito Santo Meneses, irmã de Archias do Espírito Santos Meneses. Sou Paulo Archias Mendes da Rocha, puseram-me esse nome porque esse tio era muito querido. O meu avô tinha nascido no Brasil mas toda a família era portuguesa, eram os Mendes da Rocha. Mas isso não quer dizer nada.
Porquê?
A língua é que é a mãe. Os nossos negros, os nossos índios que hoje falam português são portugueses agora. Acho que a língua é a pátria. A principal força de uma união é essa facilidade de uma certa língua em que você entende o outro. Nem sempre entende exatamente o que ele quer dizer, isso é outra coisa. Se eu disser "casa" você sabe o que eu estou dizendo mas não sei se está pensando o que eu estou a pensar. O que é uma casa aqui? O que é uma casa ali? Nós somos uma construção de nós mesmos, permanentemente. Por isso é que uma entrevista tem graça, você se apresentar como sabido. Eu sou muito falante mas não tenho nenhuma presunção de dizer que sei responder às suas perguntas, eu estou a aceitar como provocações porque estou ao mesmo tempo a perguntar: o que é que você acha disso? No fundo quem está perguntando sou eu.
Para mim há uma dificuldade: é a terceira vez que estou a entrevistá-lo e não quero repetir as perguntas.
Mas eu estou respondendo sempre a mesma coisa.
Porque a resposta é sempre do Paulo Mendes da Rocha?
Não disse isso para me vangloriar, a minha imaginação anda muito curta.
Mas é esse o seu pensamento, é normal que repita.
Por isso mesmo eu acho que o momento é de louvar essa invenção fantástica, a criação da Casa da Arquitetura, porque é um lugar do discurso. Está inaugurando algo de muito extraordinário, talvez a coisa mais extraordinária que Brasil e Portugal fizeram nos últimos tempos, construindo algo com a experiência peculiar que é a arquitetura. E aí entra bem a questão da exuberância da natureza que aparece fortemente na América descoberta há tão pouco tempo. Em todos os sentidos: descoberta como comprovação da possibilidade de uma coisa. Na época, quem dizia que a Terra girava em torno do Sol era condenado à fogueira.
Ontem estava em São Paulo e umas horas depois está aqui. O tempo é completamente diferente?
Sem dúvida. Nós vivemos na situação de perdidos habitando a superfície de um pequeno calhau de matéria abandonada no universo, girando ao ponto de ter de corrigir o relógio quando voa até aqui. Vivemos uma época muito extraordinária com a rapidez com que o Homem tem usufruído da ciência e da tecnologia. Veja a comunicação hoje, é muito recente. Eu vi aparecer a televisão, etc. etc. Não existia nada disso. E o avião é uma coisa absolutamente fantástica: nós dentro daquela ampola! É preciso ser maluco e ter coragem: 300 pessoas enfiam-se lá dentro, amarram uma coisinha na barriga e daqui a pouco estão 70 graus negativos lá fora, sem oxigénio, a 1200 quilómetros por hora, a 12 mil metros de altitude numa ampola toda artificial, tranquilamente preocupados se a bagagem de mão não sei o quê, será que esqueci os meus óculos? E vai ao banheiro e come uma coisinha, e bebe um pouquinho de água e dorme ou não dorme... é muito extraordinário, é incrível. O Concorde ligava Lisboa a Nova Iorque em três horas e o fuso horário tem quatro horas de diferença. Você podia marcar um almoço em Nova Iorque ao meio-dia e saía de Lisboa às onze e meia!
Em que projetos está a trabalhar agora?
Ahhh, você estragou o meu dia. Estou brincando. Tenho um convite para um projeto que ainda está em esboço. Na frente de São Sebastião, no canal de três quilómetros, há a belíssima Ilhabela, com 25 quilómetros de frente para o continente. É um lugar abrigadíssimo e tem um porto fantástico porque o canal tem 40 m de profundidade, não é preciso dragar. É o melhor porto do mundo, inclusive petrolífero. A Ilhabela é muito bem frequentada e até certo ponto bem cuidada para não se destruir a paisagem. Só pode ter pequenas casinhas, é um lugar de recreio, um recinto muito bonito. A prefeitura fez uma sondagem para fazer alguma coisa que anime mais a vila como ponto turístico sem estragar as ideias de conservar a natureza exuberante. É uma maravilha. São Paulo está a 700 metros de altitude, é uma serra, você desce rapidamente para o mar naquele lugar, e essa Ilhabela é um afloramento da mesma serra que surge do outro lado, com os seus mil e tantos metros também. É muito interessante considerar esta que é uma posição da arquitetura: para nós jamais a natureza é uma simples paisagem mas antes um conjunto de fenómenos. Por isso esse afloramento da mesma serra fazendo esse fosso onde passam as águas do mar é uma maravilha, um inesperado fenómeno fantástico que faz surgir algo belíssimo de se ver.