Napoleão e o elevador social

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Fui ver o filme Napoleão e gostei, sobretudo das impressionantes cenas de batalha. Devo sublinhar que sempre foram os feitos militares do corso a causa de certo fascínio pessoal pela personagem, a ponto de na última primavera, durante umas férias na Bélgica, ter subido os 226 degraus do Monte do Leão. Do cimo da colina artificial avistam-se os campos onde foi travada a Batalha de Waterloo, que é retratada quase no final do filme. Em 2015, no bicentenário da derrota definitiva do imperador francês, os mais fanáticos pelas coisas da guerra até puderam ali assistir a uma reconstituição (em pequena escala) do embate entre os cerca de 72 mil franceses às ordens de Napoleão e os 113 mil britânicos, prussianos e outros comandados pelo duque de Wellington e pelo general Blücher. Vencido, Napoleão partiu para o exílio em Santa Helena, nunca mais vendo a sua imperatriz austríaca e o filho pequeno, ambos entretanto devolvidos a Viena. Josefina, a sua primeira mulher e grande amor, morreu pouco antes. Um extraordinário museu explica tudo ali mesmo, em Waterloo.

Para felicidade de outro tipo de fanáticos por Napoleão, o filme realizado por Ridley Scott dá especial atenção, por entre as batalhas de La Grande Armée, à sua obsessiva paixão por Josefina, incluindo certas preferências sexuais que o museu em Waterloo ignora. Li algumas biografias do imperador e talvez haja generosa liberdade criativa da parte do guionista, David Scarpa. Mas sim, admita-se que há algo de muito especial na relação do general corso com as mulheres, pense-se no papel dominador da mãe, que se vislumbra no filme e está bem documentado fora dele. Josefina parecia ser também a outra generala lá em casa, só falhando por ser incapaz de dar um herdeiro ao imperador, dai o divórcio e o casamento com Maria Luísa, uma Habsburgo.

Sobre a virilidade de Napoleão há muitos estudos, até aqueles com a assinatura de Oxford, que tratam da importância da masculinidade e do sexo para a motivação do Exército Francês, então o mais poderoso da Europa (não esquecer que foi preciso o General Inverno para derrotar o corso na Rússia e, depois, pelo menos a soma de um Exército britânico e de um prussiano para desferir o golpe final em Waterloo). Descobri recentemente, num romance de Leonardo Padura, que há um grande museu napoleónico em Cuba, com milhares de peças ligadas ao imperador francês. Nesse Pessoas Decentes, também a certa altura das investigações de Mario Conde se fala do suposto pénis de Napoleão, que teria sido amputado durante a autópsia em Santa Helena, em 1821. Chegou a estar na posse da família, depois foi vendido e até esteve quase para ser leiloado. Bizarro!

Seja então pelo génio militar ou por outras razões mais comezinhas, o tal fascínio por Napoleão existe e persiste. E o êxito do filme só o comprova. Logo a começar por França, em que o sobrinho de Napoleão, que ganhou as primeiras eleições presidenciais do país, no século XIX, não resistiu a proclamar-se imperador, e na qual o estilo imperial permanece até hoje como um modelo para o chefe do Estado, do general De Gaulle a Macron, passando por Mitterrand. Numa entrevista que fiz a um dos mais recentes biógrafos, Adam Zamoyski, este não hesitou em afirmar que "Napoleão foi um grande propagandista que criou uma imagem de si mesmo que inspirou o seu povo". Mesmo na Grã-Bretanha, onde a imagem de Napoleão como um ditador está enraizada, o sucesso de vendas de livros como o de Zamoyski ou as filas para visitar uma exposição no Museu Britânico dedicada aos cartoons de época sobre o corso, confirmam a popularidade da figura dois séculos depois da morte.

Portugal não é indiferente a Napoleão (D. Pedro IV casou-se primeiro com uma irmã de Maria Luísa e depois com uma neta de Josefina, filha desse Eugénio que no filme surge ainda miúdo a pedir a Napoleão a espada do pai guilhotinado). Até já conheci portugueses chamados Napoleão. E apesar de as invasões francesas terem obrigado a família real portuguesa a mudar-se para o Brasil e terem deixado memória nas Beiras de massacres como nunca os Exércitos Espanhóis fizeram, a faceta liberal do francês sobrepõe-se no imaginário popular - basta lembrar como Gomes Freire de Andrade, general que combateu na Campanha da Rússia ao lado do imperador, é um dos nossos mártires da pátria, executado por suspeita de ser campeão da liberdade.

Napoleão Bonaparte, nascido Buonaparte, morreu com apenas 51 anos. Corso, cresceu a falar um dialeto italiano antes de dominar o francês. A família pertencia à pequena nobreza da Córsega, ilha só francesa a partir de meados do século XVIII, mas o pai, Carlo, chegou a frequentar a corte de Luís XVI.

Este filme (obra de ficção, não um documentário, sublinhe-se), em que Joaquin Phoenix encarna com graça o imperador, provavelmente falha sobretudo em transmitir um ponto muito atual: a impressionante ascensão social de Napoleão, fruto do turbilhão que foi a Revolução Francesa de 1789, mas também da sua fortíssima personalidade. Na História da Europa antes do século XX é difícil encontrar equivalente ao que chamaríamos hoje um sucesso extremo do elevador social e mesmo nos Estados Unidos só o nome de Abraham Lincoln me vem à cabeça. Noutras geografias, comparável talvez só o fundador da Dinastia Ming, Zhu Yuanzhang, ou o mongol Temunjin, conhecido por Gengis Khan. Não falemos da célebre virilidade deste último, mesmo que Borte fosse um pouco a sua Josefina, tirando a parte de lhe ter dado herdeiros.

Diretor adjunto do Diário de Notícias

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