A crise dos 70 a nu na cimeira da Aliança Atlântica
Um hotel de luxo com campo de golfe situado a poucos quilómetros de Londres vai ser o local da cimeira anual da NATO, a decorrer na quarta-feira. Uma Aliança que comemora 70 anos com mostras de desunião, num país em campanha eleitoral graças a uma decisão - o Brexit - que dividiu e polarizou a sociedade. Uma escolha para agradar ao presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, ou realizada em resultado de uma análise de vários fatores? De certa forma é o que vai estar em jogo na reunião da Aliança Atlântica: o conflito entre visões egoístas e nacionalistas e o bem comum dos 29 países aderentes. O orçamento da instituição e as despesas militares dos países era uma questão quente, mas na sexta-feira o secretário-geral da NATO, Jens Stoltenberg, regozijou-se com o aumento generalizado das despesas.
Se esse tema tão do agrado de Donald Trump poderá perder peso, outras frentes se abrem. Faz parte da agenda da cimeira a aprovação de um plano de defesa dos países bálticos e da Polónia, mas a Turquia ameaça bloqueá-lo, porque quer o seu próprio. E o presidente francês, que há três semanas declarou a Aliança Atlântica em "morte cerebral", insiste numa nova abordagem geoestratégica.
Esta é a pergunta de Emmanuel Macron que permanece sem resposta pública. Para o chefe do Estado francês esta é uma das prioridades, a par do modelo de organização para a defesa europeia. "Enquanto estas questões não forem resolvidas não vamos entrar em negociações sobre a partilha de custos", disse na quinta-feira, no final de um encontro no Palácio do Eliseu com Jens Stoltenberg.
A Organização do Tratado do Atlântico Norte nasce dos escombros da Segunda Guerra Mundial com o objetivo de assegurar que o comunismo não sucede ao nacional-socialismo na Europa Ocidental. Com o desmoronar da União Soviética e o fim do Pacto de Varsóvia, a NATO envolveu-se nas guerras dos Balcãs, expandiu-se para o leste e integrou missões fora do espaço euro-atlântico, casos do Afeganistão ou da Líbia. Em 2010, na Cimeira de Lisboa, adota um novo conceito estratégico, que reflete os novos desafios e ameaças, como sejam a proliferação de armas nucleares e de mísseis balísticos, mas também o terrorismo, os ciberataques, o tráfico de armas, pessoas e drogas.
No entanto, se a origem do perigo a conter no passado era fácil de identificar, o mesmo não se pode dizer hoje, segundo Emmanuel Macron. "O nosso inimigo atual é a Rússia? É a China? É missão da Aliança Atlântica designá-los inimigos?", questionou o francês, antes de responder: "Não creio. Parece-me que o nosso inimigo comum é o terrorismo que atingiu cada um dos nosso países."
Na terça-feira, a França perdeu 13 militares num acidente entre helicópteros durante uma operação contra um grupo de combatentes do Estado Islâmico no Mali. "O compromisso de França no Sahel está ao serviço da nossa segurança coletiva. A França está a agir por todos os outros", lembrou. A Operação Barkhane, que envolve 4500 militares franceses naquela região africana, já custou a vida a 38 deles desde 2014. Com o peso das mortes a pressionar cada vez mais o Eliseu, Macron, tal como deseja que a NATO seja repensada, também declarou que o país, enquanto única nação europeia a lutar contra o terrorismo em África, vai "examinar todas as opções estratégicas".
Se Emmanuel Macron elege o terrorismo como o inimigo comum, outros países não hesitam em apontar para Moscovo.
Na agenda da cimeira está a aprovação de um plano militar para defender a Polónia, a Lituânia, a Letónia e a Estónia em caso de ataque russo. A Rússia, que anexou a Crimeia e mantém um conflito por procuração no sudeste da Ucrânia, nunca escondeu o desagrado pela expansão da NATO para o que considera ser a sua área de influência. Mais recentemente, deixou de vigorar o tratado entre EUA e Rússia que proibia os mísseis de curto e médio alcance, um marco no desarmamento nuclear alcançado por Ronald Reagan e Mikhail Gorbachev. "O tratado foi revogado pelos EUA, mas lembro que é a nossa segurança, a segurança dos aliados europeus, que está em causa. Isto significa que os europeus devem estar envolvidos num futuro tratado. Não podemos delegar a nossa segurança a um tratado bilateral em que nenhum [país] europeu é participante", disse Macron, que recebeu uma carta do Kremlin a propor uma moratória para a instalação dos mísseis até agora proibidos.
O presidente mais jovem da história francesa tem tentado restaurar uma linha diplomática com Moscovo e criticado a ausência de diálogo. Nesse sentido, Macron e a chanceler Angela Merkel vão acolher uma reunião com o presidente russo Vladimir Putin e o homólogo ucraniano Volodymyr Zelensky, em Paris, a 9 de dezembro.
Em 2018, Donald Trump terá dito várias vezes aos conselheiros que queria retirar os EUA da NATO. Ainda antes de ser eleito já criticava a "obsoleta" aliança política e militar. O presidente norte-americano não perde uma ocasião para criticar os aliados, em especial a Alemanha, por não investirem o suficiente na defesa.
A decisão de aumentar os gastos militares na Europa, até 2% do PIB, foi tomada na cimeira de 2014, era Barack Obama presidente. Mas Trump fez desse tema finca-pé e a abordagem agressiva colheu resultados. Na sexta-feira, Stoltenberg anunciou que a despesa na Europa e no Canadá subiu entre 2018 e 2019 4,6% e que nove países já cumprem a meta dos 2% do PIB.
Mas a falta de apoio explícito de Trump aos aliados deixa-os desconfiados. Os antigos embaixadores norte-americanos na NATO Nicholas Burns e Douglas Lute, autores do relatório "Uma aliança em crise", concluíram que Trump é "frequentemente encarado nas capitais da NATO como o problema mais urgente e, com frequência, o mais difícil da Aliança". Essa quebra de confiança é comprovada pela forma como os alemães olham para o outro lado do Atlântico. Segundo uma sondagem publicada nesta semana, só 22% dos alemães confiam nos EUA para a defesa nuclear. No entanto, ao nível governamental, Berlim deu sinais de empenho na NATO. No próximo ano, os EUA vão baixar a participação no orçamento de 22,1% para 16,3% e a Alemanha comprometeu-se a aumentar de 14,8% para 16,3%. E Merkel disse: "Manter a NATO hoje é ainda mais do nosso interesse do que na Guerra Fria, ou pelo menos tão importante."
Esse é o grande desafio da Europa, mas, como Angela Merkel reconheceu, "a Europa não consegue defender-se sozinha". Também aqui Macron defende uma autonomia, ao dar impulso à Iniciativa Europeia de Intervenção, um projeto que neste momento junta 14 países (dois deles, Finlândia e Suécia, não pertencem à NATO), Portugal incluído. Em conjunto com Berlim, Paris quer tornar a tomada de decisões em matéria de política externa da UE mais eficaz, incluindo um possível Conselho de Segurança Europeu ao estilo das Nações Unidas. França e Alemanha querem também desenvolver aviões de combate e tanques em conjunto.
A pergunta foi feita por Macron na entrevista à The Economist em que declarou a NATO em "morte cerebral", a propósito da invasão de uma faixa de território sírio por parte da Turquia. Esse artigo estipula que o ataque a um dos seus membros é um ataque contra todos.
As críticas à política do presidente turco Recep Erdogan em relação aos curdos da Síria, aliados na luta contra o Estado Islâmico, fizeram eclodir um conflito diplomático nas vésperas da cimeira. "Vou dizer isto na NATO: deve verificar se está em morte cerebral", disse Erdogan dirigindo-se a Macron.
Além do mais, Ancara ameaça bloquear o plano de defesa do Báltico e da Polónia se os outros países não aceitarem um plano para a Turquia, o qual inclui o reconhecimento de que a milícia YPG é terrorista - algo que Washington e Paris não devem aceitar.