Sem apoios, artistas de circo reinventaram-se a sonhar com o regresso
Com a tenda desmontada há mais de um ano, fazem o que podem para sobreviver. Trabalhos informais que não os fazem esquecer a vontade de voltar à pista. Só não sabem quando. Nem como poderão pagar material, seguros e ganhar o tempo de que precisam para treinar.

© Natacha Cardoso/Global Imagens
Dia 17 de abril festeja-se o Dia Mundial do Circo. Mas há poucas razões para celebrar em Portugal uma arte que, apesar de milenar e considerada como de alto nível por toda a Europa, por cá apenas há meses passou a ser incluída naquilo que se considera Cultura. Essa pequena vitória num contexto de imensas dificuldades foi conseguida pela Associação Portuguesa das Empresas e Artistas de Circo, criada em maio para dar voz a uma classe de artistas até agora ignorada. E que tem sofrido efeitos especialmente duros nesta crise pandémica.
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"Para viver, somos motoristas de pesados, serralheiros, pintores, eletricistas, fazemos os biscates que podemos para ganhar algum dinheiro. Quase tudo informalmente, pequenos trabalhos de ocasião. As mulheres estão a cozinhar em lares - já estavam habituadas a fazer comida para muita gente na família circense. Somos polivalentes, no circo fazemos de tudo, e é isso que nos tem ajudado", conta Flávio Zeferino Silva, 56 anos e hoje condutor de camiões de logística. "No circo, fazia tudo. Já fui domador, apresentador, estava em pista." Começou com o irmão como acrobata e correu a Europa, passou pelo Chen e pelo Cardinali. Abriu o Circo Atlas nos anos 1990, quando quis voltar a Portugal.
Hoje casado com Mirene Cardinali, prima de Vítor Hugo, tinha acabado de dedicar seis meses a montar um espetáculo que era novidade absoluta em Portugal, o Circus of Horror, a que Isabela Cardinali e Pedro Moreira davam a cara, quando a covid rebentou e fechou as tendas. Tinha-se estreado em setembro de 2019, após seis meses de treinos, de investimento em efeitos especiais e maquilhagens profissionais. "O meu filho tem 19 anos, era equilibrista sobre o arame, fazia mortais para a frente e para trás; continua a treinar todas as madrugadas, antes de entrar no emprego que arranjou como repositor no Continente", conta.
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No circo 90% das pessoas ficaram para trás
"O governo diz e repete que ninguém fica para trás nos apoios. É mentira. No circo, 90% das pessoas foram esquecidas", relata ao DN o líder da associação dos artistas de circo, Carlos Carvalho, conhecido no meio como Carlitos Júnior. Diz que até agora a ajuda que lhes chegou foi residual. "Em 30 circos, houve três ou quatro que conseguiram recorrer ao Apoiar." Porque a maioria deles não se constitui como empresa, não conseguem cumprir critérios. Dá ainda o exemplo de um circo que durante uma década funcionou enquanto empresário em nome individual e em janeiro de 2020 decidiu estabelecer-se como empresa. Não registando perdas no ano anterior (porque não existia enquanto empresa), viu rejeitado o pedido de ajuda.
Há ainda a falta de hábito nestas andanças. "Não estamos habituados a preencher essas papeladas, nunca pedimos subsídios" e os que existem "só visam o circo contemporâneo, uma distinção incompreensível e que roça a xenofobia", lamenta, assegurando que a única ajuda que chegou, "e a muito poucos, foram os 435 euros da Segurança Social, umas migalhas".
O homem por trás da Circolândia Portugal tem esperanças no novo programa Garantir Cultura - anunciado pela ministra Graça Fonseca há uma semana e que prevê 12 milhões de euros para apoiar entidades artísticas não empresariais a partir de 30 de março, precisamente para responder a estas estruturas informais, especialmente comuns no meio circense. Mas preocupa-o a falta de perspetivas de poder voltar a montar as tendas.
"Parámos em março de 2020 e não vemos possibilidade de regressar, porque apesar de estar previsto que os espetáculos possam voltar a partir de 19 de abril nós estamos dependentes de autorizações camarárias. E as dezenas de pedidos que temos metido nas autarquias para espetáculos de verão têm vindo todos indeferidos por causa da covid", relata Carlitos Júnior.
10 mil euros para voltar a montar a tenda
Há ainda o tempo de treinos que é necessário para os artistas se prepararem, os ensaios para os espetáculos regressarem em pleno. E os custos necessários para retomar a atividade. "Se nos deixassem voltar agora, levaria semanas para os artistas deixarem os trabalhos que entretanto tomaram e voltarem a treinar e a estar em forma", relata Flávio Zeferino Silva. "Os seguros estão caducados, é preciso pagar IUC dos camiões, fazer inspeções... só para o público são dois seguros obrigatórios: o de responsabilidade civil e o de espectadores, que representam 2500 euros por ano, mais 1200 euros por veículo pesado", vai somando Carlitos Júnior. Depois há os seguros de acidentes de trabalho, o material, a logística.
"Eu trabalho com 25 artistas e mais de uma dezena e meia de técnicos (luz, som, montagens, etc.)", explica Zeferino. "Para um circo pequeno como o meu retomar a atividade, são precisos uns 10 mil euros. Para um grande, custará no mínimo 30 mil." Também ele se queixa da diferença de tratamento dada ao circo contemporâneo.
Carlos Carvalho explica: "São maioritariamente artistas performativos de rua, que não trabalham em circos, fazem exibições ocasionais, mas receberam num ano 550 mil euros da DGArtes, num apoio que pode ser renovado por mais dois anos." O líder da associação garante que a própria ministra já reconheceu que há desigualdade - e daí também ter-se criado o Garantir Cultura -, mas vinca os efeitos dessa "xenofobia nas artes circenses": "No primeiro apoio covid à cultura, em 1100 entidades só 311 foram apoiadas. O circo é uma arte milenar, nunca teve subsídios, a formação é familiar. Nós temos nove prémios internacionais de circo - aquilo a que chamam circo contemporâneo nem sequer põe os pés nos concursos."
Flávio Zeferino Silva relata a mesma realidade. "O meu primo César Dias já ganhou o Clown de bronze em Monte Carlo, é reconhecido em todo o mundo, mas cá ninguém quer saber dele. Temos grandes artistas, profissionais premiados e convidados para os maiores circos do mundo. O palhaço mais premiado de sempre, o Angelo Nuñez, é português - tem hoje 90 anos (ver caixa)."
Flávio Zeferino tem o sonho de ver a sua arte reconhecida no seu país, de aqui ver nascer um grande festival de circo como os que se realizam em Monte Carlo (Mónaco) ou em Albacete (Espanha). "Gostava de pôr o circo no alto nível de prestígio que merece, que se reconhecesse os números de grande gabarito que temos e que são muito reconhecidos lá fora. Mas aqui até os Globos de Ouro se esqueceram de nós", lamenta.
"Não é vida de rico, mas não éramos pobrezinhos"
E prémios à parte, é possível em Portugal viver do dinheiro que se ganha no circo? "Nunca tivemos de pedir subsídios a ninguém. O público vinha ver os espetáculos - vem muita gente ao circo. Trabalhávamos todo o ano e no Natal tínhamos sempre enchentes. É uma vida difícil, mas se não tínhamos vida de ricos, também não éramos pobrezinhos."
Guarda ainda outra mágoa, a de em Portugal se ter proibido os animais exóticos no circo. "Ainda há crianças que nos perguntam pelos animais... nós lutámos, mas havia muito preconceito, diziam que havia maus tratos. É mentira. Os animais eram nossos colegas de trabalho e tratados como tal."
A lei de proteção aos animais de circo, aprovada pelo Parlamento em outubro de 2018 e promulgada em fevereiro seguinte, determina que até 2025 nenhum animal selvagem pode ser utilizado em espetáculos circenses. Já desde 2009 os portugueses estão proibidos de comprar animais ou reproduzir os que têm e a lei permite a entrega voluntária dos animais ao Estado já a partir deste ano, tendo sido criado um programa de entrega voluntária e dotado o Instituto de Conservação da Natureza e das Florestas de 375 mil euros para ajudar a transferir estes animais para santuários de vida selvagem ou outras instituições capacitadas para os receber.
A entrega voluntária não prevê qualquer compensação para quem entregue os animais. "Estamos a falar de leões, tigres, elefantes, cavalos... cada animal destes custa 50 mil euros e tem muitas despesas de manutenção, alimentação, inspeções sanitárias e para garantirmos que estão bem tratados e saudáveis."