A culpa dos árbitros

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Mark Zuckerberg tem uma cabeça interessantíssima. Não me refiro ao que se passa no seu interior, mas à sua forma, em repouso e em movimento. É tão interessante que por vezes é difícil manter a concentração quando estamos a olhar para ela; é como observar uma lâmpada que aprendeu recentemente a transpirar, mas ainda está a tentar perceber como funciona o processo.

A cabeça de Mark Zuckerberg apareceu nesta semana na televisão - uma breve entrevista num programa da CNBC - para comentar a última batalha na guerra entre as palavras do presidente dos Estados Unidos e os sítios onde essas palavras se materializam. O Twitter decidiu - pela primeira vez - acrescentar a tweets escritos por Donald Trump links para verificação de factos. Zuckerberg reiterou aquilo que já dissera várias vezes: que não compete às plataformas online ser "árbitros da verdade" e decidir o que é falso ou verdadeiro, muito menos quando se trata de "discurso político".

No centro deste debate está uma definição elusiva: o que são exactamente plataformas como o Facebook ou o Twitter e se devem comportar-se como órgãos de imprensa ou apenas como oxigénio. O argumento da cabeça de Zuckerberg parece ser esse: que ninguém exige ao oxigénio que ande por aí a corrigir a sua acústica em tempo real. É uma das mais convenientes consequências de construir uma empresa tão global e omnipresente que se pode confundir retoricamente com o oxigénio: ganha-se o poder de negar que os seus outros poderes existem. Plataformas desta dimensão são um excelente mecanismo de distribuição, e uma das coisas que distribuem com mais eficácia é a responsabilidade dos seus arquitectos.

A ideia de que o Facebook e o Twitter não devem exercer uma função editorial assenta numa definição limitada de "função editorial", que confunde intenção com acção. "Editar" é algo que se faz, não apenas um modo como se pensa; e o Facebook edita constantemente, mesmo quando delega a soma dessas acções a algoritmos. Além disso, tanto uma como outra companhia têm termos e condições, cujas alíneas são violadas diariamente milhares de vezes; a decisão de quais violações punir e quais ignorar é sempre uma decisão editorial.

E, no entanto, é possível que Zuckerberg tenha alguma razão, embora a cabeça de Zuckerberg não seja o melhor instrumento para perceber ou explicar porquê. A verdade é que os jornais sempre estabeleceram uma distinção entre peças jornalísticas e colunas de opinião, em que as primeiras obedecem a critérios de validação apertados (mesmo que por vezes falhem, são sempre sujeitos a correcção) e às segundas é concedida uma latitude muito maior em matérias de facto. Uma coluna de opinião pode afirmar que a cabeça de Zuckerberg tem a forma de uma lâmpada sem provocar intervenção editorial.

Talvez Zuckerberg devesse optar por essa absolvição específica: não somos oxigénio, mas o maior jornal do mundo, em que, por acaso, toda a gente é colunista. Em todo o caso, exigir ao Facebook e ao Twitter que exerçam certas funções editoriais específicas é pedir-lhes que resolvam problemas que os meios de comunicação tradicional andam há alguns anos a tentar resolver sem sucesso.

A maneira como o debate sobre desinformação e fake news foi sendo construído legitima o jornalismo tradicional numa altura de crise - enquadrando um fenómeno sobre a qual é fácil aos profissionais reclamar jurisdição. Mas também reproduz frequentemente a forma de um pânico moral, e uma das características dos pânicos morais é incentivarem a procura rápida de soluções (sejam elas legislativas, judiciais ou tecnológicas) antes sequer de se saber qual é o problema.

Jay Rosen, um professor de Jornalismo na Universidade de Nova Iorque, anda desde 2016 a desabafar repetidamente que a desinformação é um problema de procura tanto como um problema de oferta, mas que ninguém parece muito interessado em pensar no lado da procura. Centrar a discussão na disseminação de fake news evita falar no apetite para o seu consumo - e permite preservar um conjunto de narrativas santificadas sobre, por exemplo, a esfera pública, o eleitorado e a formação de decisões em democracia, que são pouco mais do que mitos confortáveis. Se concluímos que há pessoas a ser manipuladas, o problema fundamental não é das pessoas, basta lidar com as fontes da manipulação.

É uma forma de ver o mundo que imagina a consequência optimizada de qualquer debate assente em factos como uma experiência de conversão: uma pessoa acredita em coisas falsas por ter sido exposta a factos incorrectos, mas passa a acreditar em coisas verdadeiras assim que for exposta à informação devidamente verificada. Mas as fake news, como Rosen sugere implicitamente, são um fenómeno de identidade cultural, e não um problema epistemológico. A procura que os órgãos que as transmitem identificaram, e para a qual refinam a sua oferta, não é por factos plausíveis, mas por histórias que expliquem (ou pelo menos organizem) emoções que já se sentem.

Qualquer utilizador regular do Twitter está em condições de saber que uma vasta percentagem de tweets superficialmente "sobre" política não são mais do que diferentes iterações performativas das frases "sou de esquerda" ou "sou de direita". Ao dispor desta performance, há um vasto repositório comum de vocábulos e imagens, automaticamente familiar para todos os utilizadores, e cujos elementos estão separados por grau e não por género. "Cuba", "Chile", fotos de guilhotinas, etc.

Da mesma maneira, os recantos da internet preenchidos por tabelas com diferenças de QI entre raças, ou notícias de freiras violadas em conventos por refugiados pagos por George Soros, ou imagens dos cartões da PIDE de Cavaco Silva, ou posts da tia Clotilde sobre vacinas sintetizadas a partir da pele de sapos comunistas são janelas para uma paisagem mental socializada, tão saturada como um quadro de Brueghel. Aproveitam o ideal fundador de plataformas online - o de que somos definidos pelas nossas preferências, sejam elas sobre música, política ou gastronomia - e convertem todas as matérias-primas da "opinião" em símbolos e talismãs.

O que nunca são é pontos num argumento, nem mecanismos de persuasão, e é um erro lê-los dessa maneira. Estão mais perto de fábulas ou literatura folclórica, cuja função é dar forma a algo que já existe e transmitir uma espécie de "lealdade à marca". Isto é quem eu sou e estes são alguns elementos da história em que acredito.

Nada disto é um problema novo, nem foi inventado pela internet, que se limitou a desenvolver instrumentos para encontrar e agregar esta procura. Antigamente era necessário aprender mais do que uma língua estrangeira, e subscrever fanzines publicada em Düsseldorf, antes de se poder concluir com alguma segurança que a culpa de tudo era dos judeus; hoje basta memorizar um login e uma password.

O único ingrediente novo é que o presidente dos Estados Unidos pôs-se activamente do lado da oferta, mas esse não é um problema exclusivo das redes sociais, nem vai ser resolvido por elas. Sinalizar algo como "falso" ou "verdadeiro" neste contexto pode funcionar como paliativo para um desconforto generalizado, mas é duvidoso que funcione como cura. O acto de validar promove a instituição que escolheu fazê-lo ao estatuto de árbitro, ou, pior ainda, ao estatuto de VAR; e os árbitros e o VAR nunca vão ter razão. Para uma percentagem significativa do público, não passam a ter autoridade só porque a exerceram; passam apenas a fazer parte de uma história que já conhecem - e na qual há muito decidiram não acreditar.

Escreve de acordo com a antiga ortografia

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