"Hoje ninguém consegue ter uma opinião sem que seja logo insultado nas redes sociais"

Mais de quatro décadas depois da sua primeira exibição pública, o filme A Santa Aliança, de Eduardo Geada, ganha nova atualidade através da sua edição em DVD, em cópia restaurada pela Cinemateca. Pretexto para uma conversa com o realizador.

A primeira exibição pública do filme A Santa Aliança, de Eduardo Geada, ocorreu em 1978, na Quinzena dos Realizadores, no Festival de Cannes. Com Io Apolloni, Lia Gama, Henrique Viana e Helena Isabel nos principais papéis, foi uma das primeiras ficções do cinema português a abordar, a quente, as convulsões do pós-25 de abril: as clivagens políticas dividem as suas personagens, ao mesmo tempo que todas elas se comportam como atores de um grande teatro social. Mais de quatro décadas depois, o testemunho do filme ganha nova atualidade através da sua edição em DVD, em cópia restaurada pela Cinemateca, com chancela da Academia Portuguesa de Cinema - para Eduardo Geada, foram tempos de uma "turbulência política" que, em qualquer caso, não se confundia com a mera troca de insultos.

Como decorreu o processo de restauro de A Santa Aliança que permite que, mais de quatro décadas passadas sobre a sua estreia, o filme volte a circular, agora em DVD?
O restauro do filme começou um pouco antes do projeto do lançamento em DVD, isto porque a Cinemateca Portuguesa e o Arquivo Nacional das Imagens em Movimento (que faz parte da Cinemateca) têm um projeto de restauro, em cópia digital, de filmes portugueses cujos originais já estão um pouco degradados. A certa altura, recebi um contacto do ANIM, dando conta que iam iniciar o restauro de A Santa Aliança, perguntando-me se eu estaria disponível para ver algumas sequências em que havia riscos e em que a luz parecia já não corresponder ao original. Devo dizer que fiquei muitíssimo bem impressionado com os jovens técnicos que encontrei no ANIM. Depois do filme restaurado, a Academia Portuguesa de Cinema, através do Paulo Trancoso, mostrou-se interessada em editar a cópia restaurada em DVD.

É um trabalho que está a contribuir para o reavivar das memórias cinematográficas.
Dadas as dificuldades financeiras que, em Portugal, o sector da cultura continua a ter, só espero que a Cinemateca e o ANIM tenham, de facto, possibilidade de continuar o excelente trabalho que têm feito - e que o façam em relação a todo o património do cinema português. Neste momento, tendo em conta a quantidade de títulos que há no mercado, estas edições em DVD poderão não ser muito promissoras em termos comerciais, mas trata-se de uma atitude e um gesto cultural que, a longo prazo, serão compensadores.

Será que, sobretudo entre os cinéfilos mais jovens, há um conhecimento deficiente da história do cinema português?
Depende dos cinéfilos. Nas chamadas folhas da Cinemateca e nas suas edições digitais, tenho lido depoimentos sobre o cinema português muito ponderados e documentados. E há investigadores, por exemplo na Universidade Nova ou na Universidade da Beira Interior, na Covilhã, que se têm dedicado ao estudo do cinema - há, de facto, uma elite de cinéfilos muitíssimo bem informados e pode dizer-se que alguns deles estão até, com nova documentação, a reescrever a história do cinema português. Sobre o cinéfilo em geral, não sei responder, mas parece-me que os filmes da minha geração, de um modo geral, não têm visibilidade suficiente.

Em A Santa Aliança encontramos o retrato de uma época muito específica, obviamente muito diferente do tempo presente. Seja como for, somos levados a pensar que algo ficou daquela época, algo que marcou as nossas vidas, quer em termos sociais, quer no plano político. Diz-se, por vezes, que foi uma época de grande "confusão", misto de inocência e perversidade política - é assim também que a recorda?
Sinto-me mais inclinado a falar de inocência do que de perversidade, até porque nessa época eu ainda era muito jovem. Quem, como eu, ainda estudou durante o período do Estado Novo e sofreu diretamente os efeitos da censura, não pôde deixar de acolher o 25 de abril e a libertação dos meios de comunicação como um fator altamente positivo. Aliás, a minha formação cinéfila começou quando era estudante da Faculdade de Letras, através do cineclube universitário. E aí, como em todas as associações académicas do começo dos anos 70, havia uma forte cultura de protesto - como é natural nos jovens e nas universidades, e mais natural ainda quando a PIDE interrompia reuniões de estudantes, quando as próprias instalações universitárias eram revistadas de alto a baixo à procura de material subversivo... O material subversivo que lá tínhamos era uma velha cópia de O Couraçado Potemkine que nos foi confiscada... O 25 de abril foi, assim, acolhido de braços abertos mas, nos dois ou três anos subsequentes - precisamente aqueles em que preparei e filmei A Santa Aliança -, também presenciei uma turbulência política e, em particular, uma turbulência de opiniões que dividiu muita gente. Mesmo no cinema, velhos companheiros e amigos das lides cinematográficas, da crítica e do jornalismo acabaram em pólos opostos.

Concretamente, em termos cinematográficos, durante a preparação de A Santa Aliança, o que estava a acontecer?
O filme foi preparado em 1976/77, período em que havia as chamadas "unidades de produção" no interior do então Instituto Português de Cinema: eram, no fundo, as equipas que iam fazer os filmes que tinham sido aprovados no concurso desse ano. Muitos realizadores que não viram os seus filmes aprovados, protestaram (legitimamente, como é óbvio), afastaram-se das políticas do IPC e começaram a fundar cooperativas. Nessa altura, também por razões de natureza pessoal, eu frequentava muito os meios do teatro, sobretudo do teatro de revista. E tanto no teatro como no cinema assisti àquelas reuniões intermináveis em que uns defendiam uma coisa, outros estavam contra, uns eram pelos projetos individuais, outros pelas cooperativas... Aquilo gerava discussões, polémicas, mas não havia insultos como há hoje; creio que a sociedade de hoje é, do ponto de vista cultural, mais conflituosa do que nessa época. O que eu vejo agora é que ninguém consegue ter uma opinião sem que seja logo insultado nas redes sociais.

Como é que o mundo do teatro marcou a própria narrativa do filme?
Desde logo, as cenas do teatro foram rodadas no ABC, no Parque Mayer. Depois, há uma dicotomia essencial entre o grupo de profissionais do teatro que se organiza em cooperativa e a vida da família do banqueiro. Mas, quer de um lado, quer do outro, há uma hipocrisia constante na maneira como as personagens falam - as personagens do teatro querem ser revolucionários mas, ao mesmo tempo, fazem-se amantes do banqueiro para arranjar dinheiro para montar um espectáculo de revista. Ou seja, o filme é pautado por um ambiente de contradições que envolve e define essa ambiguidade de parte a parte. Há uma dimensão política, como não podia deixar de ser, mas o que mais me interessava era denunciar este clima de incoerência e fingimento. E é também por isso que o filme é todo pontuado por cortinas teatrais que se abrem e fecham: de facto, todos estão a representar alguma coisa - representar é, neste caso, mostrar uma faceta que só existe no desejo e no imaginário, algo que as pessoas não são e gostariam de ser. Em simultâneo com o discurso político, há no filme um discurso de ironia social e de distanciamento formal.

E a difusão dos filmes portugueses naquela época? Era mais fácil do que será agora?
Não, pelo contrário, quanto mais não seja pela quantidade de canais de televisão e streaming que agora existe. De qualquer modo, naquela época ou agora, há uma dificuldade que resulta do mesmo factor, isto é, a rentabilidade para as salas. É por isso que é tão meritória esta parceria entre a Academia de Cinema e a Cinemateca para editar filmes portugueses em DVD.

dnot@dn.pt

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