Comissão da Liberdade Religiosa quer jeovás, budistas, hindus e crentes sem religião contabilizados
Pergunta sobre religião pouco mudou desde 1900, quando foi pela primeira vez integrada no Censos. Comissão propôs que sejam acrescentadas as opções budista, hindu e testemunha de Jeová, assim como "crente sem religião". INE diz que vai integrar proposta no inquérito-piloto em 2020. E que depois se verá.
"Achámos que devíamos alertar o Instituto Nacional de Estatística para a necessidade de aperfeiçoamento da pergunta", diz ao DN Eduardo Vera Jardim, presidente da Comissão da Liberdade Religiosa (CLR). "Pareceu-nos que o estudo sobre as identidades religiosas na Área Metropolitana de Lisboa [publicado no início de julho, mas cujas conclusões foram conhecidas no final de 2018] tinha ressaltado um conjunto de matérias com alguma novidade e fizemos uma proposta com a intenção de penetrar um pouco mais o fenómeno religioso. Gostaríamos que o Censos não significasse um recuo em relação a esse estudo."
A proposta, consensualizada no seio da comissão, foi apresentada num reunião tida "há dois ou três meses" com o presidente do INE, Francisco Lima, com a responsável da equipa que está a elaborar o questionário. "Disseram que iriam tomar isso em consideração", certifica Vera Jardim.
O conteúdo da proposta é explicado ao DN pelo também membro da CLR Alfredo Teixeira, sociólogo responsável pelo estudo a que Vera Jardim alude (Identidades religiosas e dinâmica social na Área Metropolitana de Lisboa). "Propusemos que as opções passassem a incluir Testemunha de Jeová, Budista e Hindu, que a designação Protestante fosse reformulada, passando a ser Protestante/Evangélico, e que fosse acrescentada também a opção Crente sem Religião. Aquilo que nos parece essencial é que a grelha vá no sentido de tornar mais visível a diversidade existente."
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Aparentemente, a única alteração na pergunta sobre religião entre 1900 e 2011 foi a introdução das categorias "outra cristã" e "outra não cristã"
Em 2011, como em 1991, a pergunta sobre religião, facultativa (ou seja, não é de resposta obrigatória), teve a mesma redação. A saber, sob a epígrafe "Indique qual é a sua religião" alinham-se oito opções: "Católica"; "Ortodoxa"; "Protestante"; "Outra cristã"; "Judaica"; "Muçulmana"; "Outra não cristã", "Sem religião".
Na proposta de inquérito que o INE colocou online em abril de 2018 para consulta pública, com o título "Conteúdo a observar no Censos 2021", adiantando as alterações que o organismo entendeu fazer relativamente a 2011, a pergunta em causa mantém-se inalterada: o INE não terá visto necessidade de qualquer ajuste.
Aliás, atendendo ao constante na página relativa ao inquérito de 1900 no site do INE, a pergunta foi pouco mexida desde a primeira vez em que surgiu num Censos, há 119 anos (quando, releve-se, existia no país uma religião oficial, a católica): as opções foram "católicos", "protestantes", "ortodoxos", "israelitas", "maometanos" e "sem religião". A única alteração entre 1900 e 2011, aparentemente, foi então a introdução das categorias "outra cristã" e "outra não cristã".
Nas quais no último ano censitário puseram a cruzinha, respetivamente, 163 338 e 28 596 pessoas. Curiosamente, os "outros cristãos" formam um grupo maior do que ortodoxos (56 550) e protestantes (75 571) somados; o mesmo se passando em relação aos "outros não cristãos" e à soma dos judeus e muçulmanos (3061 mais 20 640). Ou seja, os "outros" indiferenciados eram, em 2011, 191 934 pessoas.
"Não vale a pena fazer perguntas que não servem para nada"
191 934 pessoas das quais a pertença religiosa ficou por identificar, mesmo se o objetivo expresso da pergunta, lido no site do INE, é "retratar a população residente em termos de padrão religioso". Uma falta de curiosidade que do ponto de vista de Vera Jardim não faz sentido: "É preciso que o inquérito seja o mais preciso possível. Senão não vale a pena fazer perguntas que não servem para nada."
Contactado pelo DN, o INE esclarece que "as categorias das confissões religiosas propostas pela Comissão da Liberdade Religiosa serão testadas no 'inquérito-piloto' que terá lugar em 2020. A categorização e redação final serão estabelecidas pelo INE, com base nos resultados desse inquérito".
A categoria "crentes sem religião" é a que tem crescido mais nos últimos anos, mas o INE não tencionará incluí-la no Censos 2021
A resposta não só entra em contradição com o que foi estabelecido no documento para consulta pública colocado online em abril de 2018, o qual anuncia que no último trimestre de 2019 será fechada a "versão final do conteúdo a observar", como se furta à questão, colocada pelo DN, sobre se todas as categorias propostas pela CLR, incluindo "crentes sem religião", vão ser integradas no piloto.
Alfredo Teixeira, que releva ser esta a categoria que em termos daquilo a se pode chamar "identidade religiosa" é a que mais cresceu nos últimos anos em Portugal, tendo duplicado entre 1991 e 2011 em inquéritos nacionais e correspondendo já na AML - onde vivem dois milhões e oitocentas mil pessoas, quase um terço da população portuguesa - a 13,1% dos inquiridos, ficou no entanto com a ideia de que o INE não tenciona incluí-la no Censos.
"A categoria do perfil religioso não institucionalizado não foi integrada", diz o sociólogo. A justificação que o INE deu na reunião, informa, teve a ver com "protocolos internacionais", nos quais o instituto afiança que "essa opção não está ainda vulgarizada."
Mais de 8% dos inquiridos não respondem à pergunta
A opção poderá não estar vulgarizada nos protocolos internacionais, mas parece ganhar cada vez mais importância em termos reais. Num inquérito publicado em maio de 2018, "Ser Cristão na Europa Ocidental", levado a cabo pelo Pew Research Center, entre os inquiridos sem filiação religiosa (24% do total, variando entre 15% em Portugal, Irlanda e Itália e 48% na Holanda), 28% disseram acreditar num "poder superior" (higher power) que não a divindade descrita na Bíblia. E mesmo entre os que se identificaram como "cristãos não praticantes" 51% disseram crer "noutro poder superior que não o do deus descrito na Bíblia".
A preocupação do INE com os ditos protocolos, que aliás cita na resposta enviada por escrito ao DN - "No que respeita às especificações técnicas das variáveis estatísticas e da respetiva desagregação, a realização do Censos obedece ao Regulamento de Execução (UE) 2017/543 da Comissão, de 22 de março de 2017 que estabelece as regras de aplicação do Regulamento (CE) 763/2008, do Parlamento Europeu e do Conselho relativo aos Recenseamentos da População e da Habitação" -, não impede que, perante a realidade específica do país, proponha retirar do inquérito de 2021 categorias como "instalações sanitárias", "sistema de abastecimento de água", "instalações de banho ou duche", que "constam na legislação da União Europeia". Tal é possível, explica o INE, porque "o regulamento prevê que os países com um nível de cobertura elevado possam dispensar a observação da variável."
"É preciso que o inquérito seja o mais preciso possível. Senão não vale a pena fazer perguntas que não servem para nada."
O instituto tem pois autonomia para aferir do que faz ou não sentido colocar no Censos. Mas parece ter reticências em especificar quais os seus critérios; quando perguntado pelo DN sobre o usado para a ordenação das opções da pergunta sobre religião (que não é nem alfabético nem parece ter qualquer relação com a representatividade, ou tão-pouco com a lógica, já que faria sentido ser "sem religião" a primeira opção), não responde.
E quanto à questão "ao longo do tempo em que esta pergunta existiu no Censos, ou seja, desde pelo menos 1900, quantas vezes foi alterada, como e por que motivos?", limita-se a dizer que "na longa história censitária a pergunta sobre religião foi sendo alterada com vista a retratar os padrões religiosos da sociedade portuguesa, à época."
Por fim, confrontado com a possibilidade de a epígrafe da pergunta - "qual a sua religião" - induzir a ideia de que é suposto ter-se religião, quando obviamente há quem não tenha, e perguntado sobre se pondera alterá-la para algo mais neutro, nega resolutamente tal hipótese: "A perceção de 'redação indutora' nunca foi identificada por qualquer pessoa, quer nos diversos testes efetuados ao longo dos últimos anos quer na própria realização dos Censos 2001 e 2011. De referir que, apesar de facultativa, a variável regista, até à atualidade, uma elevada taxa de resposta (91,7%) em 2011: 91,0% em 2001, para citar apenas os mais recentes."
Uma elevada taxa de resposta, sem dúvida, mas com 8,3% de não respondentes. Se o INE tem alguma noção do motivo dessas abstenções, não o divulga.
Uniões de facto do mesmo sexo e o Censos
A pergunta sobre religião não é a única na história do Censos que parece ter parado no tempo. Se no que respeita ao casamento o Censos 2021 vai pela primeira vez perguntar se o respondente está casado com uma pessoa do mesmo ou de outro sexo (tendo a alteração legal que permitiu o acesso de casais dos mesmo sexo ao casamento sido efetuada em 2010, a opção não foi integrada no Censos 2011), de acordo com a proposta de inquérito para 2021 a categoria união de facto continua a não permitir essa especificação, apesar de a lei que reconheceu as uniões de facto de casais do mesmo sexo datar de 2001.
Poder-se-ia considerar que a ausência dessa definição se deve ao respeito pela intimidade dos inquiridos (aliás, em 2011 a pergunta foi prevista no Censos e os seus resultados foram suprimidos, por a Comissão Nacional de Proteção de Dados a ter considerado "sensível" e "referente à esfera privada", assim como uma outra que perguntava nome e sexo de pessoa não residente na habitação que ali estivesse presente no dia 21 de março - o do Censos). Mas no citado documento de abril de 2018 do INE, nas variáveis "a observar no Censos 2021" está prevista a "Identificação do cônjuge ou parceiro em união de facto na família." Ou seja, o que não se pergunta diretamente vai ter uma resposta indireta.
INE não prevê perguntar se união de facto é com pessoa do mesmo sexo ou de sexo diferente mas prevê perguntar qual o nome da pessoa com quem se vive em união de facto
Em todo o caso, quando questionado sobre a não integração de uma pergunta sobre o sexo do parceiro da união de facto o INE não invoca qualquer parecer da Comissão Nacional de Proteção de Dados nem tão-pouco refere a pergunta sobre a identificação do parceiro em união de facto; volta a invocar os protocolos internacionais. "O Regulamento de Execução (UE) 2017/543 determina a necessidade de distinguir as pessoas casadas entre "pessoa casada com pessoa de sexo diferente" e "pessoa casada com pessoa do mesmo sexo", não prevendo essa distinção entre "sexo diferente" e "mesmo sexo" para as pessoas em união de facto", responde o instituto.
Mas será que o facto de o regulamento não obrigar a fazer a pergunta significa que proíbe essa mesma pergunta? A mesma interrogação se coloca no que respeita à identificação do sexo/género. Apesar de o país ter desde 2018 uma lei de autodeterminação de género que prevê a existência de pessoas intersexo (ou seja, que não se definem como femininas nem masculinas, e nas quais se integram os hermafroditas), na variável "sexo" só está prevista, para o Censos 2021, a opção "feminino" e "masculino".
A responsabilidade, mais uma vez, é imputada pelo INE ao "regulamento": "As categorias de resposta para a variável Sexo estão igualmente definidas no Regulamento de Execução. As categorias estabelecidas são Masculino e Feminino." Como poderão as pessoas intersexo responder a esta pergunta obrigatória o INE não adianta.