Falta de chuva pode "hipotecar" campanhas agrícolas do próximo ano
Os receios de agricultores e criadores de gado confirmaram-se: a situação de seca que começou a verificar-se em novembro tem continuado e tornado este inverno um dos mais secos deste século. "Houve um agravamento muito significativo da situação de seca em relação ao final de dezembro. Neste momento, temos já 54% do território em seca moderada, 34% em seca severa e 11% em seca extrema", relata ao DN Vanda Pires, especialista do Instituto Português do Mar e da Atmosfera (IPMA). De acordo com a climatologista, todo o país "está em situação de seca", sendo que o maior alarme está concentrado na região Sul, nomeadamente na zona litoral do Baixo Alentejo e do Algarve.
O momento é preocupante e o Ministério do Ambiente adiantou ao DN que na próxima terça-feira, 1 de fevereiro, vai ter lugar uma reunião interministerial para avaliar a situação.
Embora o IPMA confirme que o atual cenário não está ainda ao nível da seca registada em 2005, "uma das mais graves que tivemos", os indicadores meteorológicos apontam para que "este janeiro deverá ficar entre os três mais secos desde 2000". Os dados indicam que nas estações de outono e inverno, nas últimas duas décadas, o "aumento destes períodos secos está a tornar-se um normal que não deveria ser". Sobre as causas, Vanda Pires não tem dúvidas de que esta tendência "é um reflexo das alterações climáticas", que se têm verificado em toda a bacia do Mediterrâneo, onde os fenómenos meteorológicos extremos têm sido cada vez mais frequentes e intensos.
"Os cenários de alterações climáticas, no futuro, continuam a projetar o aumento destas situações de seca, com maior frequência até ao final deste século. É algo que já se está a sentir e que deverá ter continuidade", acrescenta ainda a climatologista.
A diminuição abrupta de precipitação, ou mesmo a sua ausência, tem consequências diretas nos níveis hídricos das albufeiras, que têm vindo a descer ao longo das últimas semanas. Segundo o último boletim semanal da Agência Portuguesa do Ambiente (APA) de 17 de janeiro, a disponibilidade hídrica baixou em 11 bacias hidrográficas e aumentou apenas em três em relação aos números da semana anterior. "Os armazenamentos na primeira quinzena de janeiro de 2022 por bacia hidrográfica apresentam-se inferiores às médias de armazenamento de janeiro (1990/1991 a 2020/2021), exceto para as bacias do Douro, Vouga, Guadiana e Arade", lê-se no documento.
Entre as 55 albufeiras monitorizadas pela APA, apenas oito "apresentam disponibilidades hídricas superiores a 80% do volume total e 14 têm disponibilidades inferiores a 40%". Neste momento, as situações mais críticas estão concentradas nas albufeiras de Alto Lindoso (a 14% de capacidade), de Campilhas (4%), Monte da Rocha (15%), Rôxo (18%) e Bravura (14%).
Vanda Pires adianta que, relativamente às previsões de chuva para as próximas semanas, "infelizmente as notícias não são as melhores" e que não é esperada precipitação até ao final de janeiro. "Diria que pelo menos até meio de fevereiro não é expectável que a situação se altere. As previsões a longo prazo apresentam a continuação desta situação durante mais tempo, mas temos de olhar para elas com alguma cautela", acrescenta. De facto, para que fosse possível inverter o risco de seca severa ou extrema seria necessário que "chovesse continuamente em fevereiro e março".
A preocupação manifestada por quem depende da terra para sobreviver adensa-se com a atual situação de seca, em particular nas regiões mais afetadas, e vem agravar a saúde financeira dos agricultores. "A campanha agrícola de 2021/2022 não podia ser pior", diz Firmino Cordeiro ao DN. O diretor-geral da Associação de Jovens Agricultores de Portugal (AJAP) refere-se aos "problemas" causados pela pandemia - como o encerramento de canais de venda e interrupção das cadeias de abastecimento -, mas também ao "aumento brutal dos fatores de produção" por via dos combustíveis, da energia e, como reflexo direto, das sementes, pesticidas e fertilizantes. "Tudo está a acontecer à agricultura nesta reta final [da campanha]", lamenta. Os efeitos da seca neste inverno já se fazem sentir, ainda que com impactos distintos consoante o tipo de cultura e a região onde se encontra. "Se falarmos em culturas hortícolas, que produzem quase 365 dias por ano e que vendem diariamente, começa a sentir-se necessidade de regar", observa o responsável. A consequência, diz, é clara: aumento da mão de obra e custos acrescidos com a compra de água. As maiores dificuldades, refere, serão sentidas nas culturas permanentes, como a vinha, o olival e o amendoal.
"Sem água, não conseguimos alimentar a planta, o que quer dizer que hipotecamos a campanha de 2021/2022 e podemos hipotecar a seguinte, porque as plantas não criam as reservas suficientes para, depois da dormência do próximo inverno, poderem rebentar de novo", antecipa Firmino Cordeiro. O diretor-geral da AJAP acredita ser importante "preparar um bom plano nacional de regadio", assim como a criação de "uma estratégia nacional de água", que devia, aponta, ser motivo de "compromisso muito forte por parte dos partidos políticos". Para fazer face às dificuldades mais imediatas, é preciso garantir "ajudas ao agricultor para suplementar estas perdas de rendimento". O aumento de preço dos produtos agrícolas devia igualmente aumentar, para refletir as despesas adicionais, algo que não tem acontecido.
Até que cheguem os apoios, a solução passa por tornar as produções mais eficientes e por uma gestão criteriosa da água disponível. "Por exemplo, regar à noite e com as quantidades certas, no momento certo, porque hoje em dia conhecemos as necessidades das plantas em função das suas produtividades. Regulando o ciclo da água, conseguimos regular o ciclo nutricional das plantas, utilizando os fertilizantes na altura certa e nas quantidades mínimas necessárias", aconselha. Neste campo, a agricultura de precisão será a melhor aliada de quem explora a terra. Em todo o país, Firmino Cordeiro defende que sejam criadas "sete ou oito megabarragens que alimentem todas as outras", à semelhança do que foi feito com a construção da barragem do Alqueva.
No Alentejo, uma das regiões historicamente mais afetadas por períodos de seca e também uma das que atravessa maior dificuldade neste momento, a Comissão Vitivinícola Regional do Alentejo (CVRA) tem, desde 2015, um programa de sustentabilidade dirigido a viticultores e produtores de vinho. A ideia, explica o responsável pelo projeto, João Barroso, é "promover a resiliência do sistema" por via da agricultura regenerativa. "O que se faz? Plantar árvores endémicas, arbustos, corredores ecológicos ou zonas-tampão nas vinhas," O resultado manifesta-se em solos mais saudáveis, que, por sua vez, retêm mais água. "Um solo saudável deve ter mais de 100 componentes químicos, mas um solo em Portugal tem, em média, dois ou três desses elementos e, regra geral, são azoto e fósforo dos fertilizantes artificiais que lá são colocados", esclarece o engenheiro ambiental.
"Até agora, no Alentejo choveu metade do que a média dos últimos cinco anos. Este é um indicador claro de preocupação", aponta. Com menos precipitação, e consequentemente menos água armazenada, não só a saúde do solo é prejudicada como dificulta a produção de uva. "O verdadeiro problema virá quando chegar o calor e a água for necessária [para regar]", alerta. Enfrentar este tipo de situações - que, assinale-se, são cada vez mais frequentes - não é hoje difícil do ponto de vista técnico e tecnológico, mas o desafio está na sensibilização e educação da indústria. É isso que a CVRA procura fazer através de diferentes iniciativas. Atualmente, dos 1800 viticultores e das 220 adegas registadas cerca de 400 viticultores e 100 adegas já participam no programa de sustentabilidade da entidade responsável pelos vinhos alentejanos.
"Desde que este programa começou, mais de 60% dos nossos associados têm planos de gestão de água, mais de 40% fazem revisão periódica dos seus sistemas de rega e mais de 60% fazem controlo do consumo de água." Segundo o especialista em sustentabilidade, o rácio ideal na produção de vinho é utilizar um litro de água para cada litro de vinho, algo que ainda não acontece de forma generalizada. "Temos vários produtores que andam ali entre 1,2 litros e 1,5 litros de água por cada litro de vinho. Temos o exemplo de um grande produtor que consumia quase 15 litros para produzir um litro de vinho e conseguiu, em cinco anos, uma redução de 60%. É extraordinário."
Para João Barroso, resolver o problema, ou pelo menos atenuá-lo, depende da utilização das técnicas já mencionadas, da aposta na tecnologia para melhorar a eficiência da produção e ainda da criação de reservatórios de água.
A ausência de precipitação implica, para criadores de animais, a necessidade de preparar sementeiras para que exista alimento disponível, nomeadamente para as ovelhas da raça autóctone da serra da Estrela. Joaquim Lé de Matos, presidente da EstrelaCoop, diz que o setor ainda não está "no centro da tempestade", mas que a falta de alimento fará com que o rendimento da produção de leite para o queijo Serra da Estrela diminua e os custos aumentem. O problema, além das despesas adicionais, está na ausência de chuva, já que sem ela as sementeiras não se desenvolvem e será preciso adquirir suplementos alimentares. Os custos, sublinha, voltam a subir.
"O preço do leite não vai variar, porque existem valores previamente acordados com os produtores de queijo, mas isso tem consequências económicas."A indisponibilidade de grande parte das superfícies comerciais para aumentar o preço pago aos produtores é também uma dificuldade. "Poderá haver um apoio do Ministério da Agricultura", diz, acrescentando que "às vezes chegam tarde, mas são bem-vindos". Não existe, para já, qualquer indicação de que esses apoios venham a ser concretizados.
Contactado pelo DN, o Ministério do Ambiente diz estar a acompanhar a situação de seca e confirma que haverá, na próxima terça-feira, dia 1, "uma reunião interministerial para avaliar a situação".
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