Setenta anos de vida, 50 de carreira e nem por isso Fernando Tordo fica menos nervoso antes de um concerto. "Divirto-me imenso no palco. Mas estes dias antes são muito insuportáveis para mim, são muito difíceis", confessa o músico. "É uma responsabilidade grande, muita adrenalina, é preciso ter alguma saúde para aguentar", ri-se. "Depois, quando começo a tocar, isto passa.".Nesta quarta-feira à noite vai apresentar-se no Centro Cultural de Belém, em Lisboa, e no sábado estará no Coliseu do Porto em dois concertos que farão a antevisão do disco que será lançado na próxima semana: Duetos. Diz-me com Quem Cantas, no qual interpreta 17 temas do seu repertório com 17 músicos convidados. Alguns deles estarão nos concertos: Maria João, Ricardo Ribeiro, Carlos Moisés (Quinta do Bill), Filipe Manzano Tordo, Marisa Liz (Amor Electro) e Rita Redshoes..Este disco de duetos era uma coisa que Fernando Tordo já queria fazer há muito tempo, mas precisou de um empurrãozinho dado pelos músicos Lino Guerreiro e Valter Rolo, que fazem parte do octeto que o acompanha ao vivo, e que disseram que queriam muito fazer os arranjos para este trabalho. A gravação demorou 14 meses. "São 17 convidados e é muito difícil coordenar datas, são artistas com muito trabalho e que viajam muito, felizmente", explica o músico, que pegou no reportório de 50 anos de carreira e foi selecionando temas e convidando cantores sem grandes preocupações a não ser a sensação de que essa escolha poderia resultar.."Já sabia de antemão que se convido Jorge Palma, que é amigo há mais de 50 anos, vai ter de ser para fazer o Cavalo à Solta porque ele sempre que me vê começa a cantar 'minha laranja amarga'...", ri-se Tordo. Da mesma forma, Rui Veloso ficou com a canção Só Ficou Amor por Ti, "que já tinha cantado há muitos anos num espetáculo no coliseu". "Depois pensei: gostava muito de ouvir como é que a Carminho entende a Estrela da Tarde. A Anabela, que foi recentemente mãe, poderá interpretar a Balada para os Nossos filhos. Como é que será o Tim, dos Xutos & Pontapés, a cantar aquela coisa toda seguida que é o Café? Para a Maria João, que é do jazz, só poderia ser O Rato Roeu a Rolha...".E assim se foi compondo o disco. "Alguns conheço-os há uma eternidade, como Herman José ou Marisa Liz, que conheço desde pequenina, e outros nem sequer conheço ainda, como Capicua, que está no Porto e muito grávida", conta Fernando Tordo. "Heber Marques [dos HMB] é uma novidade, foi o meu filho Francisco Maria quem mo mostrou e eu pensei 'que bem que canta este tipo' e desafiei-o a cantar comigo o Adeus Tristeza." De todos os convidados, só um não canta: é Filipe Manzano Tordo, filho de Fernando, pianista clássico que o acompanha em Os Cantores da Minha Terra.."A intenção era justamente surpreender-me", explica Fernando Tordo. "Como é que estas pessoas, com todas as diferenças, que são enormes, entendem o repertório deste fulano que já tem tantos anos de carreira. É diferente quando uma pessoa compõe já a pensar num dueto que vai fazer com alguém. Neste caso, já tinha estas cantigas, muitas delas o público conhece muito bem. E eles aceitaram vir cantá-las comigo. Estou-lhes muito grato a todos, alguns deles, mesmo não me conhecendo, vieram por respeito, por consideração e isso é muito gratificante.".O disco que chega às lojas no próximo dia 9 é, portanto, o último ato de celebração que se iniciou nos concertos do ano passado, no Tivoli e na Casa da Música, e continua com os concertos desta semana, no CCB e no Coliseu do Porto: "É uma festa que de alguma maneira encerra os meus 70 anos. É muito importante para mim - independentemente da qualidade que possa ter ou não, é um disco que fica como uma referência de um compositor e cantor português que de alguma forma marcou estes últimos 50 anos. As pessoas olham para mim já como um dinossauro. É uma sensação agradável mas responsabiliza muito.".50 anos de histórias.Fernando Tordo lembra-se de ser miúdo e de já ficar fascinado a ouvir música. "Gostava das canções mas o que sempre me interessou foi saber quem é que estava por trás delas. O que é que se passa na cabeça de uma pessoa para fazer isto. De tal maneira que quando ouvia alguma coisa de que gostava ia para casa e com as guitarras ia tentando inventar a minha própria música. Faço isso desde sempre", conta. Aprendeu ouvindo. E nesses primeiros tempos teve como grande mestre Luís Villas-Boas, para quem haveria de compor o tema O Homem do Jazz. Foi ele quem lhe disse, numa noite em que se cruzaram no Café Vává: "Senhor Fernando? Você gosta de fazer canções? Gosta de tocar? Gosta de ir para o palco? Então você não se atrapalhe que o que custa mais são os primeiros 40 anos.".Foi uma lição para a vida. Fernando Tordo não se atrapalhou. Ao longo da sua carreira já fez canções para muita gente. "A primeira pessoa que me encomendou uma cantiga foi Carlos do Carmo há mais de 50 anos", recorda. Depois dele, Paulo de Carvalho, Carminho, Mariza, Camané, Ricardo Ribeiro são algumas das vozes que interpretam temas seus. Mas é justo dizer que, mais do que autor, Tordo é conhecido do grande público como intérprete. "Ah, os festivais da canção! Aquilo era uma coisa bem mais profunda do que se pensa", lança. "Eu não concorri aos festivais para me divertir, eu concorri porque eu era músico, compositor e cantor e não conseguia entrar em lado nenhum. Naquele tempo, quando eu tinha 18, 19, 20 anos, não conseguíamos mostrar a nossa música, foi preciso trabalhar muito e evitar as malhas da censura. O festival da canção era um dos meios em que a gente tinha a possibilidade de se ouvir o que nós fazíamos.".E depois, claro, há as histórias todas em volta dos festivais. Em 1973, a Tourada, com Ary dos Santos. "Num momento em que o nosso país atravessa uma crise profunda, de um cinzento mais negro que há, quase negro, a gente coloca uma festa daquelas, uma demência daquelas, num festival. Eu pensava: vamos ficar em último lugar. Mas a alegria era a possibilidade de cantar uma cantiga daquelas, neste país, naquela circunstância, com uma Guerra Colonial no seu auge de mortes e sacrifícios, uma gigantesca crise. É uma cantiga que tem aquela gaiatice toda, mas é importante. Os que gostam, os que não gostam, os que queriam que fôssemos à Eurovisão e os que não queriam, não interessa, as pessoas associam aquele tempo, imediatamente antes do 25 de abril, à Tourada.".Fernando, que chorou de alegria quando José Saramago ganhou o Prémio Nobel da Literatura, é um apaixonado por poesia e acredita que "qualquer bom poema é musicável". De tal forma que tem dificuldade em ler poesia porque na sua cabeça os poemas estão automaticamente a transformar-se em canções. Quando não anda entre poemas e pautas, o melhor que pode fazer é ir para o seu armazém, pintar e ouvir música:"Esses são os meus grandes momentos. Fazer aquilo que não sei fazer, que é pintar, e ouvindo aquilo de que sei alguma coisa, a música. Comecei a pintar há muitos anos, e aquilo mexe muito comigo. A pintura tem até na terminologia coincidências com a música, a cor, a densidade, o cromatismo, a sombra, há uma relação. A gente tem uma tela branca e se puser um ponto preto, a primeira coisa que me ocorre é que é música. Faço expressionismo abstrato. Chego, pego no pincel e surge sempre qualquer coisa. É um pouco terapia, retira-me da carga de stress.".Neste momento anda a ouvir um disco de 1954 de Tony Bennett (o seu principal ídolo) com o guitarrista Chuck Wayne, mas também Frank Sinatra, John Coltrane, Charlie Parker, Bernard Hermann, Michel Legrand com Miles Davis. "E depois de vez em quando ponho os Shadows", diz. "Só para refrescar." Sempre em vinil, com umas colunas de "altíssima qualidade". Isto, enquanto pensa já no seu próximo disco, só com originais, que há de sair não sabe quando, porque não tem pressa. Mais do que um trabalho, a música é a sua respiração, diz Fernando Tordo: "A música consta de mim. Faz parte da minha vida desde sempre. O que teria sido a minha vida sem música? Não creio que tivesse sido alguma coisa de jeito.".Concertos:.30 de janeiro, Centro Cultural de Belém, Lisboa Bilhetes: 15-30 euros.2 de fevereiro, Coliseu do Porto Bilhetes: 27-35 euros