Hospital das Forças Armadas disponível para formar médicos para o SNS
A obtenção de "idoneidade formativa" por parte do Hospital das Forças Armadas (HFAR), junto das ordens dos Médicos, permitir-lhe-á ter vagas para a formação de médicos internos destinados ao Serviço Nacional de Saúde (SNS). A informação consta do estudo da ex-ministra da Saúde Ana Jorge sobre o Sistema de Saúde Militar (SSM), concluído em junho e que os chefes militares continuam a desconhecer, mas serviu de base a um despacho recente do ministro da Defesa, João Gomes Cravinho - e que, sem qualquer divulgação pública, está disponível na página digital do ministério, constatou o DN.
O estudo de avaliação do SSM encomendado em março por Gomes Cravinho a Ana Jorge, que suscitara fortes reservas na instituição militar face às lacunas que lhe apontaram num estudo anterior sobre a mesma temática, considera que "o HFAR pode constituir-se, não só como polo formador de médicos das FA como receber médicos civis do internato médico".
Mas esse contributo do HFAR na "formação complementar" dos internos pressupõe que o hospital militar altere a lógica de utilização dos médicos ali colocados - permitindo que continuem a exercer clínica independentemente dos postos a que são promovidos como oficiais - e que o HFAR seja reconhecido como instituição formativa pelas respetivas autoridades civis. E que pode passar também pela formação de enfermeiros.
O ministro Gomes Cravinho, no seu despacho de meados de julho com as orientações para concretizar "a coerência e a sustentabilidade do SSM", determinou "como objetivo futuro que o HFAR obtenha, junto da Ordem dos Médicos e da Ordem dos Enfermeiros, idoneidade formativa".
Note-se que os médicos militares com posto mais elevado (e mais experientes) acabam impedidos de exercer prática clínica no HFAR porque as regras da hierarquia militar, associadas aos postos, acabam por se sobrepor à experiência e competências técnicas. Uma consequência disso está na ocupação do cargo de diretor do HFAR, que é exercido em regime de rotatividade pelos três ramos.
"A escolha dos dirigentes deve guiar-se por critérios, essencialmente, de competência técnica e não por lógicas de pura alternância. Acresce que esta prática também dificulta/impede qualquer processo de integração, contrariando, assim, a decisão política", conclui o estudo de Ana Jorge.
Esta lógica de integração e atuação conjunta na área hospitalar justificou a extinção, na legislatura anterior, dos hospitais militares de cada ramo das FA (quatro em Lisboa) e a criação do HFAR, após décadas de oposição das chefias militares.
Mas um efeito colateral dessa reforma do SSM por se traduzir na perda da idoneidade formativa por parte do então Hospital Militar Principal (Exército), lembra ao DN um dos seus últimos diretores, major-general Lopes Henriques.
O estudo de Ana Jorge, que envolveu visitas a unidades de saúde da Marinha, Exército e Força Aérea, constata que "o desempenho do HFAR está muito dependente dos recursos humanos aí colocados" - daí considerá-los como "o ponto mais crítico" da análise realizada ao SSM. "A maioria dos médicos militares deixam de exercer medicina no SSM porque foram promovidos a determinado posto, sendo desviados para funções de gestão e administração", regista Ana Jorge nas conclusões do estudo.
Além de equacionar "a vantagem" de o HFAR "passar para a dependência direta" do ministro da Defesa, o estudo de Ana Jorge sugere "adotar-se uma 'política organizacional' que acomode a possibilidade de um médico de patente mais elevada poder integrar um serviço cuja direção seja exercida por um médico de patente inferior".
A capacidade de o HFAR ganhar idoneidade formativa decorrerá também de os serviços clínicos deverem "espelhar a hierarquia técnico-científica da carreira médica e não" a da carreira militar. "Cabe ao diretor de cada serviço [...] definir objetivos e planos de ação, proporcionar os meios (tempos, financiamento, formação, etc), monitorizar e avaliar, reconhecer e valorizar o desempenho" - o que Ana Jorge qualifica como "uma 'mudança cultural'" que também permitirá reduzir custos e valorizar a capacidade de resposta desses serviços.
Para Ana Jorge, "a modernização da gestão [do HFAR] e a fixação dos profissionais mais diferenciados" também "são atores de atração para os doentes do SNS e facilitadores do estabelecimento de parcerias" com hospitais civis.
Está nesse caso "a recuperação das listas de espera nalgumas especialidades", exemplifica a ex-ministra da Saúde, defensora de um modelo organizacional e profissional semelhante ao dos hospitais civis (com uma direção ou conselho de administração em vez de um diretor, como sucede agora).
Lopes Henriques, oficial general agora na reforma, considera um erro olhar para o HFAR como uma estrutura civil e não como a unidade militar que é. Contudo, reconheceu a necessidade de fazer coincidir a hierarquia militar com a técnica e científica - o que seria possível, entre outros exemplos, se os vários cursos de promoção frequentados por oficiais médicos substituíssem o estudo do comportamento de divisões blindadas em operações de ataque por formação em administração e gestão hospitalares.
Por outro lado, alerta Lopes Henriques, quem daria e como daria uma punição através de um conselho de administração? Ou seria o ministro da Defesa, tendo o HFAR na sua tutela direta, a entidade de recurso disciplinar e ou administrativo de decisões tomadas pelos responsáveis do hospital? "Há decisões no âmbito técnico, militar e administrativo que não se tomam por votação", insistiu o antigo diretor do hospital militar da Estrela.
Duas das estruturas do SSM visitadas por Ana Jorge foram o polo do HFAR no Porto e a Unidade de Saúde do Exército em Coimbra, que suscitaram reservas quanto à situação atual (no primeiro caso) e sobre planos futuros (no segundo).
Tendo o edifício hospitalar do Porto mais de cem anos e com os seus quatro serviços - médico, cirúrgico, convalescença e reabilitação, cuidados intermédios - a apresentarem "uma demora média elevada" face aos valores de referência no SNS, sendo civis mais de metade dos 60 médicos e dos 90 enfermeiros, Ana Jorge manifestou reservas sobre a manutenção daquela estrutura hospitalar.
Acresce que a maioria da população ali internada é composta por militares reformados - a qual "pode beneficiar, com melhor qualidade [...], de outras estruturas hospitalares públicas" no SNS ou com quem o subsistema de assistência na doença dos militares (ADM) tem protocolos, sugeriu Ana Jorge.
Relativamente à unidade hospitalar em Coimbra, o estudo de Ana Jorge considera que as suas diferentes estruturas devem servir o conjunto dos militares das Forças Armadas e não apenas os do Exército - e recomenda expressamente que não seja concretizado o plano de construir um "departamento de internamento e bloco operatório".
"Não está demonstrada a necessidade de criar essa capacidade, a qual é disponibilizada, de forma adequada, no SNS e no HFAR" em Lisboa, afirma o estudo, questionando a sustentabilidade daquele serviço nos planos "financeiro e de eficiência clínica".
Já esta sexta-feira, em Dili, Timor-Leste, onde se encontra no âmbito da comemoração dos 20 anos do referendo que conduziu à independência do território, o ministro da Defesa Gomes Cravinho confirmou a informação avançada pelo DN e anunciou em declarações à Renascença que, a partir do próximo ano, o Hospital Militar vai formar médicos especialistas.
[notícia atualizada às 08.28 de 30 de agosto com a confirmação por parte do ministro da Defesa]