
Best of DN 2019
Da impotência à morte súbita: os riscos das substâncias que aumentam os músculos
As notícias sobre o internamento do ator Ângelo Rodrigues vieram alertar para o uso de substâncias ilícitas para melhorar a imagem corporal. Ao DN, vários especialistas confirmam um aumento na dimensão do problema, que tem riscos sérios para a saúde. (texto publicado originalmente a 30 de agosto)
Quem entra nestes esquemas passa quase sempre pelas mesmas etapas. Utilizam doses 50 a cem vezes superiores às recomendadas. Compram as substâncias na internet, através do mercado negro, onde não existe qualquer controlo de qualidade ou segurança. Injetam-se ou pedem a pessoas sem qualquer formação que o façam. No início, sentem-se como super-heróis: os músculos crescem e a gordura diminui. Depois vêm os problemas: diminuição da libido, impotência sexual, colesterol, agressividade, doenças cardiovasculares, enfartes. Em casos extremos, dizem os médicos, o consumo de esteroides anabolizantes pode levar à morte.
Relacionados
Davide Carvalho, presidente da Sociedade Portuguesa de Endocrinologia, Diabetes e Metabolismo, acredita que o consumo de substâncias ilícitas que potenciam o crescimento muscular está a aumentar em Portugal: "Nós recomendamos que as pessoas façam mais atividade física, mas muitas vezes estas coisas [o consumo de anabolizantes] estão implementadas nos próprios ginásios. Não se compreende."
De acordo com o especialista, é comum existirem complicações associadas ao consumo de esteroides, que pode ser feito por via oral ou através de injeções. "É frequente. Contudo, regra geral, as pessoas não assumem que fizeram estas terapêuticas ou os familiares não sabem. Há um aumento da massa muscular e uma hipertrofia da massa muscular cardíaca, que conduz a enfartes. Muitas vezes são jovens que morrem de morte súbita e não se sabe porquê", diz o endocrinologista.
Subscreva as newsletters Diário de Notícias e receba as informações em primeira mão.
O tema voltou à discussão com as notícias do internamento do ator Ângelo Rodrigues, de 31 anos. O jovem foi internado devido a uma infeção grave, depois de fazer injeções de esteroides (testosterona). Desde então, já foi submetido a três cirurgias e sujeito a hemodiálise. Mas não há confirmação oficial desta informação. Contactada pelo DN, a assessoria de comunicação do hospital não quis prestar esclarecimentos e a agente do ator não confirma as notícias. Ainda assim, o caso serve de alerta para a utilização de substâncias associadas ao culto do corpo.

Ângelo Rodrigues participa na série 'Golpe de Sorte', da SIC.
A administração de esteroides anabolizantes apenas é indicada em situações clínicas muito específicas, como alterações endocrinológicas, em determinados tumores (próstata, por exemplo) e em pessoas que estiveram muito tempo imobilizadas, alerta Luís Horta, médico especialista em antidopagem. "E são administradas doses terapêuticas e com grande vigilância de eventuais efeitos secundários", explica, destacando que a administração ilícita preocupa a comunidade científica desde o final do século passado, que foi quando surgiram os primeiros estudos sobre o tema.
Apesar de não existirem dados oficiais que o comprovem, o ex-presidente da Autoridade Nacional Antidopagem acredita que o consumo estará a aumentar, sendo já considerado um problema de saúde pública em alguns países. De acordo com um estudo feito em 2012 pela European Health and Fitness Association, que analisou a realidade de nove países da União Europeia, 2,5% dos utentes de ginásios admitiu usar substâncias dopantes. Em Portugal, a percentagem foi superior: 4,2%. Mas Luís Horta acredita que os dados estão subestimados: "Os utentes que responderam frequentam ginásios associados da AGAP [Associação de Ginásios e Academias de Portugal]. Não estão associados os ginásios de ferro e das garagens, onde esta prática é mais prevalente."
Em 2016, Portugal foi considerado um dos principais exportadores destes produtos. Em três anos de investigação, a PJ apreendeu 750 mil comprimidos (tabs) e 50 mil ampolas produzidas em cinco laboratórios clandestinos. O material, avaliado em dois milhões de euros, era produzido em laboratórios que funcionavam sem qualquer higiene, em garagens ou até em cozinhas, ao lado de cinzeiros cheios de beatas.
Riscos "indescritíveis"
Quando questionamos o médico sobre os riscos destas substâncias, Luís Horta diz que são quase "indescritíveis". "A dimensão dos efeitos secundários é enorme e depende da dose e da duração da administração", sublinha. Para melhoria da imagem corporal, são tomadas "doses supraterapêuticas" - as chamadas "doses cavalares" - e, em alguns casos, esteroides usados para engordar gado.
Um dos problemas prende-se, desde logo, com a qualidade do produto, já que "a maior parte são comprados na internet, no mercado negro, e embora as embalagens se assemelhem ou pareçam iguais às da farmácia, muitos deles são fabricados sem qualquer controlo de qualidade". Num dos frascos que analisou em laboratório, o médico encontrou uma mistura de testoterona e insulina - e não existe qualquer estudo científico sobre esta combinação. Já na administração, que não é feita por profissionais de saúde, os riscos são inúmeros: "Más práticas de assepsia e pele não suficientemente desinfetada, contaminação de agulhas, partilha de seringas, reutilização de agulhas pelo mesmo indivíduo e partilha do vial [o frasco onde vem o produto]."
"A maior parte destes produtos são comprados na internet, no mercado negro, e embora as embalagens se assemelhem ou pareçam iguais às da farmácia, muitos deles são fabricados sem qualquer controlo de qualidade."
Aos consultórios médicos chegam vários casos clínicos de pessoas que sofrem os efeitos secundários dos esteroides anabolizantes. Davide Carvalho recorda um doente, que trabalhava numa empresa de segurança, que não conseguia ter relações sexuais com a mulher devido ao uso de produtos para modelar o corpo.
A curto prazo, adianta Luís Horta, a toma destas substâncias provoca diminuição da produção de espermatozoides (no homem) e alterações menstruais (na mulher), bem como diminuição da libido e impotência sexual, que conduz à infertilidade. Também é comum aparecerem homens com ginecomastia (crescimento anormal das mamas) e mulheres com hipertrofia do clítoris. A médio e longo prazo, surgem problemas como colesterol, doenças cardiovasculares, AVC, enfartes do miocárdio, maior predisposição para tumores malignos do fígado, próstata e mama.
Do ponto de vista psíquico, há um aumento da agressividade e dependência. "As pessoas que começam a tomar esteroides anabolizantes ficam dependentes do uso, o que se associa a uma nova patologia - a dismorfia muscular." Luís Horta diz que quem sofre desta doença olha-se ao espelho e considera que não está suficientemente musculado, mesmo quando tem uma massa muscular bem acima da média. Tal como acontece com a anorexia, há, segundo o médico, uma distorção da imagem corporal, que leva a uma frequência exagerada do ginásio, a pôr a vida pessoal e profissional em segundo plano. "É uma situação patológica nova e preocupante."
A obsessão pelo ginásio
Associada à toma destas substâncias que prometem milagres e dos suplementos alimentares, dos quais falaremos mais à frente, pode estar uma obsessão pelo corpo perfeito - a vigorexia. Fernando Lima Magalhães, psicólogo que intervém nesta área, diz que este transtorno consiste "numa preocupação exagerada com o tamanho da musculatura do corpo, uma obsessão em atingir um ideal, que não é ideal nenhum, vinculado em revistas e outros meios".
Este transtorno obsessivo-compulsivo, como já é considerado por alguns profissionais, estabelece-se quando a preocupação central da vida da pessoa passa a ser o corpo, "negligenciando trabalho, amigos, família". É mais frequente nos homens, adianta, e na casa dos 20 anos. Quando a pessoa não trabalha o corpo, prossegue, "há um sentimento de culpa e vergonha". Do ponto de vista empírico, o psicólogo acredita que o problema está a aumentar, embora poucas pessoas procurem ajuda.
"Na indústria da moda e da televisão, muitas pessoas são avaliadas pelo corpo", critica o psicólogo, destacando que a indústria "obriga as pessoas a padrões doentios". "Isto é perverso. É preciso mudar as definições de beleza." Segundo o especialista, o uso de esteroides anabolizantes e suplementos alimentares está, em muitos casos, associado à vigorexia.
Resultados rápidos aliciam
A ideia de ter resultados rápidos em pouco tempo pode ser "muito aliciante" para quem procura ter o corpo perfeito, diz Nuno Martins, doutorando e investigador na área do controlo de peso e comportamento alimentar na Universidade de Leeds, em Inglaterra. "É muito mais aliciante recorrer a um produto destes do que alterar a dieta, comer menos ou treinar mais", afirma.
Nuno Martins diz que 95% das questões que recebe nas redes sociais, onde tem milhares de seguidores, são "para melhorar o corpo e não por questões de saúde". As pessoas querem saber "como podem perder peso ou ganhar massa muscular". A testosterona, explica, é usada para obter resultados mais rápidos ou potenciar os resultados do ginásio, mas "pode ter efeitos dramáticos".
Quanto aos suplementos alimentares, o investigador considera que "podem ser importantes como complemento a uma dieta, especialmente se existir uma insuficiência nutricional (que deve ser definida por um profissional após análises sanguíneas). Também existem os suplementos ergogénicos, como a cafeína, que podem melhorar a performance".
Esta é uma questão que preocupa a Ordem dos Nutricionistas. Contactada pelo DN, a bastonária, Alexandra Bento, diz que "a dimensão do problema tem aumentado, porque há um culto indevido do corpo". Atualmente, os suplementos alimentares estão sob a alçada da Direção-Geral de Alimentação e Veterinária (DGAV), mas, para a nutricionista, é necessário que haja "regulação e supervisão do setor dos suplementos alimentares para proteção da saúde pública". Não raras vezes, estes produtos são adquiridos através da internet, sem qualquer garantia de qualidade.
"A dimensão do problema tem aumentado, porque há um culto indevido do corpo."
"Se é um setor forte, cujo crescimento não deverá parar, é necessário assegurar qualidade, eficácia, segurança e acesso devido aos suplementos", indica a bastonária. Como existem princípios ativos, Alexandra Bento diz que o seu uso comporta "riscos de natureza diversa", que vão desde a contaminação dos produtos à administração. "Quem é o prescritor? Tem de ser um profissional de saúde", alerta.
A bastonária da Ordem dos Nutricionistas considera, ainda, que é necessário aumentar a literacia da população. "Quem faz estas coisas não quer atentar contra o seu corpo e saúde. Faz porque entende que é o melhor", refere.
Jovens não precisam de hormonas
Ao consultório de Ivone Mirpuri, especialista em medicina antienvelhecimento e modulação hormonal, chegam vários casos de jovens com problemas resultantes da administração de esteroides anabolizantes de forma ilícita: "atrofia dos testículos, ginecomastia, diminuição da libido". "Sou completamente contra a utilização destes esteroides anabolizantes. Em situação alguma devemos usá-los", realça.
Trabalha com testosterona bioidêntica - "igual à nossa" -, mas, frisa, "as pessoas jovens não precisam de hormonas". Em princípio, explica, podem é necessitar de fazer "modulação" das suas próprias hormonas. "Tirar café, álcool, tabaco, comer bem e fazer exercício".
Com o passar dos anos, tende a existir uma diminuição da testosterona e é nessas situações que recomenda a sua utilização. "Bioidêntica e não em níveis malucos", frisa, destacando que esta hormona ajuda a proteger a saúde de homens e mulheres, melhora a função sexual, dá energia, vitalidade e faz baixar a tensão arterial, entre outras vantagens.