A Baixa de Setúbal ganhou nova vida. A culpa é deles... e dos turistas
O edifício de paredes pretas com enormes cachos de rosas vermelhas a cair das janelas impõe-se. Passou a ser o prédio mais fotografado de Setúbal, dizem os proprietários da petisqueira Sem Horas, que abriu há cerca de um mês num dos largos mais conhecidos da Baixa, o Largo da Misericórdia. Até já lhes foram perguntar se podiam usá-lo como imagem nos postais da cidade.
Esta é apenas uma das novidades da Baixa setubalense, onde dia sim, dia sim abrem novas lojas, hostels e restaurantes de conceito. E são sobretudo estes que têm trazido nova vida a uma Baixa que há dois, três anos estava moribunda, repleta de lojas de portas fechadas e paredes grafitadas e onde muita gente tinha medo de andar à noite. As poucas lojas que abriam eram normalmente de chineses.
Agora é diferente, à noite as esplanadas estão cheias, há gente na rua, muitos turistas. "Uma sexta-feira em que houve espetáculos itinerantes cheguei e vi imensas pessoas, até perguntei 'o que terá acontecido'." Helena Valente, 49 anos, tem uma loja de roupa de criança há 16 anos na Baixa, a Totinhas, chegou ali quando esta estava a entrar em declínio. "À noite ninguém vinha aqui, as pessoas tinham medo, sentiam insegurança. Agora está cheia de gente, e isso nota-se de há cerca de um ano, ano e meio para cá, mas este foi o ano em que vi mais turistas", diz a lojista.
"A Baixa merecia uma coisa assim. Devia haver mais coisas no largo, mesmo bares, em vez de se espalharem na Avenida Luísa Todi", afirma, por seu turno, Susana Jones, sentada na esplanada da sua petisqueira onde vão chegando mais e mais turistas. A proprietária do Sem Horas - nome que explica o conceito do restaurante/bar onde se pode comer um bife às oito da manhã ou uma tábua de queijos às 11 da noite - adora o Largo da Misericórdia. O mesmo largo que o seu estabelecimento agora domina com a decoração arrojada de João Maria e que também tem sido responsável por trazer animação noturna à zona. No futuro, Susana (39 anos) e o marido, Paulo Gouveia (48), veem a movida a expandir-se para a Rua Arronches Junqueiro, do outro lado do largo, que conduz ao miradouro, onde se tem uma vista fantástica sobre o rio, a cidade e a serra da Arrábida.
A mesma vista - que neste caso se estende até ao Castelo de Palmela - é abarcada pelo rooftop do Day Off. O hostel que Teresa Pinheiro, 46 anos, abriu nos finais de 2016 ocupa o edifício onde antes funcionou o jornal O Setubalense. A viver no Montijo, mas apaixonada por Setúbal, quando viu o prédio - traça original, de onde sobressaem rendilhados arquitetónicos - soube que era aqui que teria de abrir o seu negócio. "Escolhemos esta zona porque os edifícios estavam degradados e a Baixa era triste. Daí a nossa aposta - animar a nossa Baixa só faz bem à cidade e o comércio tradicional só tem a ganhar."
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Teresa considera, contudo, que a oferta de alojamento pode estar a tornar-se excessiva, sobretudo porque está a ficar disperso pela cidade, sem que os turistas tenham qualquer acompanhamento - os números disponíveis dão conta de mais 273 dormidas em 2016, quando em 2010 não passavam dos 201 mil. O Registo Nacional de Alojamento Local (RNAL) mostra 195 novas inscrições no concelho, desde setembro do ano passado até esta quarta-feira.
Quem tem investido na Baixa setubalense está de olho na Rua Arronches Junqueiro. Porque é uma rua tradicional, um mini-Bairro Alto, como todos dizem, com tascas onde os mais velhos jogam às cartas, com o colorido das roupas estendidas à janela, com o som das conversas de quem ali mora. Mas está também carregada de história, com vestígios da muralha e as antigas portas de entrada na cidade.
Jorge Brites abriu ali há cerca de dois meses o Breakfast Club, e fala disso mesmo, da vizinha que lhe grita à porta que vai ao Pingo Doce e pergunta se ele precisa de alguma coisa. Ou dos lençóis estendidos que às vezes batem na entrada do estabelecimento, ou da Ti Amélia, restaurante ao lado, que lhe manda clientes. Não trocava isto por nada. Certamente a sua vizinhança mais antiga desconhece os brunchs que fazem parte da sua ementa, mas foi este comportamento genuíno que o trouxe de Lisboa a Setúbal. "Jamais abriria alguma coisa num edifício novo."
Para que a rua atraísse mais gente, Jorge entende que devia ser cortada ao trânsito, por forma que a via pudesse ser ocupada por esplanadas. É também nesse sentido que pensa Vasco Alves, proprietário do De Pedra e Sal, e dos primeiros a investir na restauração de conceito na Baixa de Setúbal. "Essa rua é o melhor, é um Bairro Alto em pequeno e com uma história excecional. Vedada ao trânsito, com esplanadas, seria fantástica para atrair gente."
Rafael Piatkiewicz, 32 anos, filho dos artistas que criaram as cerâmicas Maria Pó - autores dos pasmadinhos gigantes que alegram o Jardim do Bonfim -, está atento ao que se passa e receia que Setúbal venha a padecer do mal das cidades que viram o turismo aumentar exponencialmente. "Não tenho dúvidas de que a gentrificação também vai chegar a Setúbal. Com porta aberta na Rua Arronches Junqueiro, não amaldiçoa os turistas nem o alojamento local - também tem sardinhas e outras figuras com a palavra Portugal - mas entende que os governantes, incluindo os locais, não aprendem com os erros dos outros: "Quando se vê quem está no poder a pensar o futuro das cidades em função do turista e do turismo... são perspetivas muito curtas. Agora abre-se hostels porque é o que está a dar, daqui a cinco anos abre-se o que estiver a bombar."
Atravessando as ruas principais da Baixa, chega-se ao Largo da Ribeira Velha (é assim que lhe chamam embora o nome seja Largo Dr. Francisco Several), que ganhou uma vida nova desde que ali abriram alguns restaurantes que transformaram a pequena praça num local agradável. A dois passos da Avenida Luísa Todi, a principal avenida da cidade, é possível aos pais estarem a desfrutar da esplanada enquanto as crianças correm à volta da Laurinda, a árvore que há dezenas de anos cresce mesmo ali no centro.
Vasco Alves, 47 anos, andou de mochila às costas por Vietname, Laos, Camboja, Índia. Quando chegou à cidade, em 2013, foi convidado para chef da Escola de Hotelaria e Turismo. Foi amor à primeira vista. "Adorei a informalidade no trato, a identidade das pessoas, que são muito genuínas."
Nessa altura, conta, a Baixa estava morta, mas ele quis viver numa das suas ruelas e achou que seria uma questão de tempo para que a revitalização avançasse. "Toda a gente me dizia que estava louco, que não devia investir na Baixa. Mas onde os outros viam problemas eu via oportunidades." E conta ainda: "Então eu que viajei pelo mundo... agora diziam-me que não havia potencial. Olhei para isto com olhos de ver."
Apaixonado pelo largo, não lhe escapou o edifício de 150 anos onde antes era a Fetal, com os seus azulejos originais. O prédio já tinha sido comprado, mas ele e o sócio Rui Almeida conseguiram arrendar a parte de baixo para restaurante e os três andares de cima para hostel. Nasceu assim o De Pedra e Sal (pedra da serra da Arrábida, sal do rio Sado), que só conseguiria abrir em finais de 2016. Até lá andou "a malta dos pincéis", graceja, referindo-se aos arqueólogos. Mas não houve achados.
E porque está numa Baixa, onde tudo o que se vende está exposto nas montras, uma das condições seria ter os seus chefs a cozinhar precisamente nas montras, sem segredos, virados para a rua onde toda a gente passa. E assim aconteceu.
Não se cansa de ver potencialidades na Baixa onde já expandiu o negócio com a abertura do Moscatel de Setúbal Experience, uma esplanada de espreguiçadeiras e pufes onde se pode estar estirado a saborear o vinho da região e apreciar a Praça do Bocage.
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Vasco não tem dúvida: quanto mais gente abrir, melhor para o negócio. Todos partilham da sua opinião e entendem que o ideal seria criar um corredor de gente entre as duas ruas principais e os largos da Baixa.
"Estarmos sozinhos no meio do deserto não atrai ninguém", afirma Pedro Gaivéu, 43 anos, que abriu a Taberna do Largo março de 2015 no Largo da Ribeira Velha e onde em breve irá inaugurar o Mar ao Largo, um restaurante com um conceito de mar virado para o mundo. Está tudo pronto, a abertura só tem vindo a ser adiada por falta de pessoal para trabalhar.
Durante 13 anos foi gerente do bar Absurdo, mas quando este mudou de instalações saiu. Pensou abrir o seu próprio negócio e um dia sentado na esplanada das Machadas, mesmo em frente aos seus restaurantes, alguém lhe disse que o espaço estava para arrendar. "Sou um homem de feelings, percebi que seria aqui..." Sempre adorou aquele largo e hoje é um dos responsáveis pela animação que a praça ganhou, nomeadamente à noite, contra o que se passava há três, quatro anos quando à noite não se via vivalma na ruas.
Pedro considera que os comerciantes deviam acompanhar a revitalização da Baixa, tanto mais que ficou provado que afinal a abertura do Centro Comercial Alegro não lhe roubou gente. Uma das soluções poderia ser, por exemplo, alargarem os horários de abertura das lojas, mais que não fosse prolongando-o no verão e compensado no inverno.
Sara Azevedo, 33 anos, abriu há ano e meio a Sara's Secret, uma loja de roupa feminina que pretende oferecer um produto diferente, do rock ao boho chic. E também ela entende que para chamar pessoas é preciso trazer coisas novas, inovar, nomeadamente nos horários. Uma das suas propostas passa por ter as lojas abertas, pelo menos, uma sexta-feira por mês até à noite. Para responder aos muitos setubalenses e turistas que, como diz, já fazem barulho nas ruas. "Antes, a seguir às 19 horas, era um silêncio impressionante."
Agora já não é assim. E a contar com a quantidade de prédios e lojas em obras na Baixa setubalense, a animação não se vai calar.