E o Ministério Público a mandar na Justiça, a designar deputados e o Presidente da República?
Quem define o edifício judicial em Portugal é a Constituição e o poder político eleito pelos cidadãos, não o Sindicato dos Magistrados do MP, ou o dos juízes, ou outro qualquer.
O Sindicato dos Magistrados do Ministério Público fez uma greve inovadora. Segundo o próprio sindicato, uma que visava apoiar as propostas do governo e, na prática, ameaçar a Assembleia da República. Se, apesar de inaudita, é aceitável a expressão de carinho ao governo, a ameaça aos representantes do povo e à Constituição é uma ingerência evidente na separação de poderes.
Não há grande novidade, diga-se. O Sindicato dos Magistrados do MP acha que é ele que tem o poder de definir o edifício da Justiça em Portugal. Como parece que quem o representa não conhece a Constituição, aproveito para lembrar que quem define a composição do Conselho Superior do Ministério Público é a Assembleia da República. Basta ler o artigo 220, número 2. Quem define o edifício judicial em Portugal é a Constituição e o poder político eleito pelos cidadãos, não o Sindicato dos Magistrados do MP, ou o dos juízes, ou outro qualquer.
Sim, a AR, aquele órgão de soberania onde se sentam os representantes eleitos pelo povo. Uns senhores e senhoras contra os quais, segundo António Ventinhas, presidente do Sindicato dos Magistrados do MP, esteve em curso uma greve. Disse-o no Negócios da Semana, programa da SIC notícias. Disse mais, muito mais. Disse que, estando os designados pelos representantes do povo em maioria no Conselho Superior do Ministério Público (CSMP), a Justiça estaria em perigo, como já tinha dito em tempos à revista Sábado; que o objetivo de mudar a composição desse órgão seria evitar que se perseguisse penalmente "quem quer enriquecer, esbanjar e prejudicar o povo". Como corolário do seu insultuoso discurso contra a democracia, afirmou, sem que lhe tremesse a voz, que o PS e o PSD querem que a Justiça regresse aos tempos do Estado Novo. Como a cobardia impera, claro os deputados vão deixar passar este infame insulto em claro.
Não querendo ficar atrás, o presidente da associação sindical dos juízes disse que a medida em causa iria no mesmo sentido do que se está a passar na Polónia e na Hungria, para rematar dizendo que Rui Rio quer controlar a Justiça.
No fundo, o cavalheiro resumiu o sentido do painel do referido programa: a proposta para que o CSMP tivesse mais representantes do povo ou simplesmente pessoas da sociedade civil é uma tentativa de controlar o MP e, minha interpretação - que foi, aliás, expressa de forma mais ou menos clara por todos -, para que a malandragem dos partidos possa praticar vilanias e ficar impune.
Mais uma vez, não há nada de novo. Afirmar que em países como a França e a Alemanha o CSMP não tem magistrados em maioria não deve ser lembrado - será que o Presidente da República acha que nesses países a democracia funciona pior do que a nossa? Mas, sobretudo, recordar que essa alteração em nada, rigorosamente nada, altera a autonomia do Ministério Público é ignorado olimpicamente. Pelo contrário, aliás. É repetido exatamente o contrário mesmo, sabendo os magistrados em causa que isso não é simplesmente verdade. O CSMP não define quem é ou o que é investigado e de que forma.
Mas que importa isso? O que de facto interessa é que o Ministério Público possa funcionar sem a menor sindicância, num sistema que se autogoverna e autoavalia. Já se sabe, os representantes eleitos do povo são uns bandidos e só querem proteger os seus interesses. Juntam-se no PS e no PSD para fazer o bloco central dos interesses e nenhum quer defender o bem comum.
Já o Sindicato dos Magistrados do Ministério Público defende uma classe em que não há falhas, em que toda a gente defende escrupulosamente a lei, em que ninguém mas ninguém mesmo deixa de fazer o que está certo. Aliás, segundo a Dra. Marques Vidal, até as quebras ao segredo de justiça devem-se aos advogados e às polícias. Tudo uma malandragem, menos, claro, os impolutos homens e mulheres do MP.
A propósito, não deixa de ser, pelo menos, surpreendente que a ex-procuradora se desdobre em declarações políticas (que é o que tem feito desde que deixou a Procuradoria-Geral da República) enquanto desempenha funções junto do Tribunal Constitucional. Imagino o que seria se políticos fizessem, sobre as suas presentes e anteriores funções, as apreciações que ela faz sobre atribuições que dizem apenas respeito ao poder político. Mas já todos percebemos que a ambição da Dra. Marques Vidal não se esgota na carreira judicial.
Claro, o povo é estúpido e vota numa rapaziada que quer dominar a Justiça para fazer maroscas. Talvez o melhor fosse deixar que fossem o Dr. Ventinhas, o Dr. Manuel Soares e a Dra. Marques Vidal a decidir quem são os deputados.
O princípio da separação dos poderes é sagrado. Sem ele não há, pura e simplesmente, democracia. Mas esse princípio impõe que todos se possam também limitar e controlar. O que não podemos ter é um poder que se acha acima de todos e que não pode ser sindicado.
O que o Sindicato dos Magistrados do Ministério Público faz - com o apoio de jornais que vivem de vender a ideia de que os representantes do povo são todos uns bandidos e de ativistas de tasca com acesso a órgãos de comunicação social que não hesitam em acusar tudo e todos se isso lhes trouxer popularidade - é vender a ideia de que são eles que estão a limpar o regime. Que são só eles que definem o que é o bem comum. Que não precisam de mandatos do povo, da Constituição ou do que quer que seja para impor o que acham que está certo.
O pior é que tudo isto é supostamente feito em função do combate à corrupção. Utiliza-se um crime que mina a comunidade, que mais lesa o funcionamento das instituições, que mais ferozmente tem de ser combatido para um combate corporativo que visa a obtenção de um poder absoluto e a prerrogativa de não ser sindicado.
O troikismo está de excelente saúde
O troikismo está vivo. Nesta semana, teve um sinal de excelente saúde quando soubemos do excedente orçamental de 0,4% no primeiro trimestre do ano.
Entretanto, o défice dos serviços públicos aprofunda-se: a saúde pública em pré-colapso, os serviços do Estado em estado comatoso e, claro, o investimento público é uma recordação antiga.
Tivemos uns milagres no princípio do último século, ali para os lados de Leiria, mas esgotaram-se. O facto é que não podemos ter serviços públicos, básicos sequer, a funcionar decentemente e contas públicas a la Passos/Costa/Centeno. Toca a aplaudir o tratado orçamental e as suicidas políticas europeias.
Mais, não é possível reformar e criar condições para termos crescimentos económicos decentes que permitam ter um país que dê melhores condições aos seus cidadãos se não existir investimento. Com um país afogado em impostos (obrigado, Passos Coelho e troika) e, agora, sem serviços públicos e continuando a ter impostos altos (obrigado, Costa e Centeno) não é possível sairmos de uma espécie de morte lenta que nos conduzirá inexoravelmente para um país medíocre e sem futuro para as próximas gerações.
As fotografias
São duas fotografias. Uma podemos ver, é a de uma criança e um homem mortos nas margens do rio Bravo. Outra, não nos foi mostrada, é a de uma mulher e três crianças que morreram de calor e desidratação. Todos tentavam fugir da miséria, da fome e em busca de uma vida melhor. Foi o desespero que os matou.
O debate que se seguiu à exibição das fotos não foi o que podemos fazer para que estas mortes não se repitam, que raio de mundo construímos que permite estas e outras desgraças; bem sei, de nada valeria.
A discussão foi se se devia mostrar as fotos, se seria voyeurismo... Não consigo imaginar conversa mais estúpida. É que se de prático nada podemos fazer, se aquela imagem de um pai e de uma filha não ajudar a despertar consciências, não sei o que o fará. E se muitas forem despertas talvez, apenas talvez, salvemos um dos milhares de nossos irmãos que morrem todos os dias de desespero.