ESTRAGON: Não posso continuar assim. VLADIMIR: Isso é o que tu pensas.. A falsa ideia de que não há camelos no Corão foi popularizada por Borges no ensaio O Escritor Argentino e a Tradição, atribuindo-a a uma fonte com maior autoridade (Edward Gibbon, no caso), e usando-a não tanto para policiar qualquer autenticidade histórica, mas para ilustrar um bom princípio de composição literária: quando se escreve sobre um ambiente desconhecido, a maior e mais nociva tentação é preenchê-lo com os exotismos que seriam irrelevantes aos olhos locais. Só os turistas se deslumbram com cavalos de duas bossas; quem os vê todos os dias não precisa de os registar..O princípio é válido também para o drama histórico, em que o criador é outra espécie de turista (temporal, ao invés de geográfico), e que nas suas piores manifestações televisivas gera uma infestação de camelos: "Como é fascinante este adereço ou circunstância típica de 1812!", exclamam dezenas de habitantes de 1812. A unidade artificial gradualmente construída de personagem, período, cenário e evento transforma-se numa convergência por decreto, que requer prova directa a cada passo da intriga. O problema é visível até nos produtos do género no limite superior da mediocridade, como Downton Abbey, quanto mais no tipo de séries históricas a que a RTP nos habituou: aquelas em que, tipicamente, o rei é assassinado por membros da Carbonária enquanto o guião é assassinado por membros da Cornucópia..As perspectivas não eram, portanto, as mais animadoras quando a RTP1 estreou O Nosso Cônsul em Havana, uma série sobre a curta estada de Eça de Queirós em Cuba. Mas dizer que a série é "sobre" um episódio da carreira diplomática de Eça é já incorrer num reducionismo atroz que denuncia a inadequação do nosso habitual vocabulário crítico para tratar um objecto deste calibre. O Nosso Cônsul em Havana é uma série sobre Eça em Cuba da mesma maneira que O Processo é um livro sobre um contratempo legal..É verdade que os tropos e mecanismos mais estafados do drama histórico são utilizados com brio. É verdade que cada semáforo de época vagamente familiar a quem tenha cumprido o ensino obrigatório é mencionado. É verdade que há constantemente personagens a gritar que "Proibiram as conferências do casino!". É verdade que em vez de alguém dizer "tens uma reunião com o ministro" ou "tens uma reunião com o Andrade Corvo", esse alguém opta por dizer "Serás convidado para uma reunião com o ministro dos Negócios Estrangeiros, o João Andrade Corvo!" É verdade que cada actor usa o estilo declamativo importado do teatro, em que o ecrã é bombardeado com consoantes e todos falam MUITO ALTO e m-u-i-to d-e-v-a-g-a-r, como se estivessem na Rua Sésamo a ensinar a tabuada ao Poupas. E acima de tudo é verdade que o diálogo é um circuito fechado em que toda a gente diz a toda a gente aquilo que toda a gente já sabe, não porque precisem de voltar a sabê-lo, mas para que o espectador o saiba. Personagem X está no lugar A e anuncia em voz alta a sua intenção de ir ao lugar B para falar com personagem Y. Quando regressa ao lugar A, alguém lhe pergunta invariavelmente: "Então, personagem X, sempre conseguiste falar com personagem Y lá no lugar B?" Quando Batalha Reis chega a um sítio, é recebido com "Então, Batalha Reis, tu por aqui?". "Nós no cenáculo somos apenas 12, a contar contigo!", explica Batalha Reis a Eça, não porque Eça tivesse dificuldades a fazer contas, mas para que nós saibamos o número de membros do cenáculo. "Eu gostava de lá chegar antes do Antero... ele é muito impulsivo, muito radical", responde Eça, explicando-nos assim que Antero era muito impulsivo e muito radical. Mas Antero tem a força das palavras do seu lado, palavras essas que seduzem Eça desde os tempos da Universidade de Coimbra. Ou, como ele próprio explica: "Este Antero... desde os tempos da Universidade de Coimbra que me seduz com a força das suas palavras.".Tudo isto é divertidíssimo, mas tangencial ao grande mérito da série, que consiste em contrabandear um drama experimental não adulterado para o horário nobre do canal público. Fingindo dar-nos um pedagógico divertimento de época, força-nos a consumir teatro do absurdo em doses semanais de 45 minutos. O truque começa a tornar-se aparente quando o malão de viagem de Eça fica retido na alfândega e percebemos que, tal como as peças de Beckett, O Nosso Cônsul em Havana é uma ficção assombrada por ausências, signos inflacionados, esperas intermináveis. "Espero que tenham desalfandegado o meu malão" "Como?" "O meu malão. A minha mala de viagem" "Ah, o malão!" "Sim" "A mala... Iremos saber do que se trata"..Mas dias e noites arrastam-se sem que o malão se materialize, apesar das repetidas visitas de Eça à recepção. "O malão já chegou?" "Lamento informar que não" "E não sabe quando chegará?" "De momento não estamos informados" "Mas não tem uma ideia?" "Também não estamos informados"..Depois de algumas peripécias menores (em que Eça, por exemplo, é atingido na cabeça com uma bola de ténis), o segundo episódio volta a recentrar tematicamente os acontecimentos: "O meu malão... Já trouxeram o meu malão?" "Ainda não chegou, excelência" "É inacreditável... Ao menos preparem-me um banho" "Um banho?" "Sim, um banho". Esteves, o adido do consulado, oferece-se para ajudar, também sem grande sucesso inicial. "Notícias do meu malão?" "Lamento" "Isto é inacreditável. Trata-se de um malão, não é uma malinha" "Lamento, Sr. Cônsul" "Isto é inadmissível"..Entretanto, ficamos a saber que o malão foi raptado por Lucky e Pozzo, que o transportam através de catacumbas e escadarias subterrâneas enquanto debatem a natureza de tão misterioso objecto: "Este caixote é mesmo difícil de transportar" "Não é um caixote, é um MALÃO!" Os dois são subordinados de Don Tomásio, o grande vilão de Cuba, cuja vilania consiste em ter um roupão muito colorido, e ser muito careca, e berrar muito alto coisas como "ACENDO O LUME DAS ÁGUAS DOS OCEANOS" ou "SEUS IMBECIS". Uma noite inteira passa. Lucky e Pozzo continuam de volta do malão. "Olhem lá, vocês andam de volta do malão desde ontem e ainda não o conseguiram abrir. E agora?" "E agora... está fechado" "Isso vejo eu! E onde é que está a chave?" "Eu tenho uma chave!" "Tens uma chave? E só agora é que dizes?" "Mas a chave não abre este malão"..A chave não o abre, o que é um problema, pois o malão encerra tesouros lá dentro: gravatas de seda, lenços perfumados, talvez até um guião. Esteves volta ao quarto de Eça. Será que traz boas notícias?."Então, aconteceu alguma coisa?"."Aconteceu e não aconteceu... Já consegui falar com alguém que está em contacto directo com o homem".."E quem é o homem?"."Bem... O homem... é o homem"..O homem é o homem. O malão é o malão. E a televisão portuguesa é a televisão portuguesa: que não via nada parecido com isto desde Dezembro de 1990, quando um anão começou a dançar em Twin Peaks..Escreve de acordo com a antiga ortografia.
ESTRAGON: Não posso continuar assim. VLADIMIR: Isso é o que tu pensas.. A falsa ideia de que não há camelos no Corão foi popularizada por Borges no ensaio O Escritor Argentino e a Tradição, atribuindo-a a uma fonte com maior autoridade (Edward Gibbon, no caso), e usando-a não tanto para policiar qualquer autenticidade histórica, mas para ilustrar um bom princípio de composição literária: quando se escreve sobre um ambiente desconhecido, a maior e mais nociva tentação é preenchê-lo com os exotismos que seriam irrelevantes aos olhos locais. Só os turistas se deslumbram com cavalos de duas bossas; quem os vê todos os dias não precisa de os registar..O princípio é válido também para o drama histórico, em que o criador é outra espécie de turista (temporal, ao invés de geográfico), e que nas suas piores manifestações televisivas gera uma infestação de camelos: "Como é fascinante este adereço ou circunstância típica de 1812!", exclamam dezenas de habitantes de 1812. A unidade artificial gradualmente construída de personagem, período, cenário e evento transforma-se numa convergência por decreto, que requer prova directa a cada passo da intriga. O problema é visível até nos produtos do género no limite superior da mediocridade, como Downton Abbey, quanto mais no tipo de séries históricas a que a RTP nos habituou: aquelas em que, tipicamente, o rei é assassinado por membros da Carbonária enquanto o guião é assassinado por membros da Cornucópia..As perspectivas não eram, portanto, as mais animadoras quando a RTP1 estreou O Nosso Cônsul em Havana, uma série sobre a curta estada de Eça de Queirós em Cuba. Mas dizer que a série é "sobre" um episódio da carreira diplomática de Eça é já incorrer num reducionismo atroz que denuncia a inadequação do nosso habitual vocabulário crítico para tratar um objecto deste calibre. O Nosso Cônsul em Havana é uma série sobre Eça em Cuba da mesma maneira que O Processo é um livro sobre um contratempo legal..É verdade que os tropos e mecanismos mais estafados do drama histórico são utilizados com brio. É verdade que cada semáforo de época vagamente familiar a quem tenha cumprido o ensino obrigatório é mencionado. É verdade que há constantemente personagens a gritar que "Proibiram as conferências do casino!". É verdade que em vez de alguém dizer "tens uma reunião com o ministro" ou "tens uma reunião com o Andrade Corvo", esse alguém opta por dizer "Serás convidado para uma reunião com o ministro dos Negócios Estrangeiros, o João Andrade Corvo!" É verdade que cada actor usa o estilo declamativo importado do teatro, em que o ecrã é bombardeado com consoantes e todos falam MUITO ALTO e m-u-i-to d-e-v-a-g-a-r, como se estivessem na Rua Sésamo a ensinar a tabuada ao Poupas. E acima de tudo é verdade que o diálogo é um circuito fechado em que toda a gente diz a toda a gente aquilo que toda a gente já sabe, não porque precisem de voltar a sabê-lo, mas para que o espectador o saiba. Personagem X está no lugar A e anuncia em voz alta a sua intenção de ir ao lugar B para falar com personagem Y. Quando regressa ao lugar A, alguém lhe pergunta invariavelmente: "Então, personagem X, sempre conseguiste falar com personagem Y lá no lugar B?" Quando Batalha Reis chega a um sítio, é recebido com "Então, Batalha Reis, tu por aqui?". "Nós no cenáculo somos apenas 12, a contar contigo!", explica Batalha Reis a Eça, não porque Eça tivesse dificuldades a fazer contas, mas para que nós saibamos o número de membros do cenáculo. "Eu gostava de lá chegar antes do Antero... ele é muito impulsivo, muito radical", responde Eça, explicando-nos assim que Antero era muito impulsivo e muito radical. Mas Antero tem a força das palavras do seu lado, palavras essas que seduzem Eça desde os tempos da Universidade de Coimbra. Ou, como ele próprio explica: "Este Antero... desde os tempos da Universidade de Coimbra que me seduz com a força das suas palavras.".Tudo isto é divertidíssimo, mas tangencial ao grande mérito da série, que consiste em contrabandear um drama experimental não adulterado para o horário nobre do canal público. Fingindo dar-nos um pedagógico divertimento de época, força-nos a consumir teatro do absurdo em doses semanais de 45 minutos. O truque começa a tornar-se aparente quando o malão de viagem de Eça fica retido na alfândega e percebemos que, tal como as peças de Beckett, O Nosso Cônsul em Havana é uma ficção assombrada por ausências, signos inflacionados, esperas intermináveis. "Espero que tenham desalfandegado o meu malão" "Como?" "O meu malão. A minha mala de viagem" "Ah, o malão!" "Sim" "A mala... Iremos saber do que se trata"..Mas dias e noites arrastam-se sem que o malão se materialize, apesar das repetidas visitas de Eça à recepção. "O malão já chegou?" "Lamento informar que não" "E não sabe quando chegará?" "De momento não estamos informados" "Mas não tem uma ideia?" "Também não estamos informados"..Depois de algumas peripécias menores (em que Eça, por exemplo, é atingido na cabeça com uma bola de ténis), o segundo episódio volta a recentrar tematicamente os acontecimentos: "O meu malão... Já trouxeram o meu malão?" "Ainda não chegou, excelência" "É inacreditável... Ao menos preparem-me um banho" "Um banho?" "Sim, um banho". Esteves, o adido do consulado, oferece-se para ajudar, também sem grande sucesso inicial. "Notícias do meu malão?" "Lamento" "Isto é inacreditável. Trata-se de um malão, não é uma malinha" "Lamento, Sr. Cônsul" "Isto é inadmissível"..Entretanto, ficamos a saber que o malão foi raptado por Lucky e Pozzo, que o transportam através de catacumbas e escadarias subterrâneas enquanto debatem a natureza de tão misterioso objecto: "Este caixote é mesmo difícil de transportar" "Não é um caixote, é um MALÃO!" Os dois são subordinados de Don Tomásio, o grande vilão de Cuba, cuja vilania consiste em ter um roupão muito colorido, e ser muito careca, e berrar muito alto coisas como "ACENDO O LUME DAS ÁGUAS DOS OCEANOS" ou "SEUS IMBECIS". Uma noite inteira passa. Lucky e Pozzo continuam de volta do malão. "Olhem lá, vocês andam de volta do malão desde ontem e ainda não o conseguiram abrir. E agora?" "E agora... está fechado" "Isso vejo eu! E onde é que está a chave?" "Eu tenho uma chave!" "Tens uma chave? E só agora é que dizes?" "Mas a chave não abre este malão"..A chave não o abre, o que é um problema, pois o malão encerra tesouros lá dentro: gravatas de seda, lenços perfumados, talvez até um guião. Esteves volta ao quarto de Eça. Será que traz boas notícias?."Então, aconteceu alguma coisa?"."Aconteceu e não aconteceu... Já consegui falar com alguém que está em contacto directo com o homem".."E quem é o homem?"."Bem... O homem... é o homem"..O homem é o homem. O malão é o malão. E a televisão portuguesa é a televisão portuguesa: que não via nada parecido com isto desde Dezembro de 1990, quando um anão começou a dançar em Twin Peaks..Escreve de acordo com a antiga ortografia.