Os meus pais e o Infarmed
Os meus pais vieram do Porto para Lisboa há quase cinquenta anos. Ao meu pai foi dada uma oportunidade que não teria se tivesse ficado no Porto e a minha mãe, professora, esteve mais de um ano parada até que conseguisse ser colocada numa escola da zona de Lisboa. Ninguém os empurrou e a sua sobrevivência económica não estaria em causa se tivessem permanecido na cidade onde nasci. Felizardos, eles e muitos outros homens e mulheres que puderam escolher. Outros, muito provavelmente a maioria, tiveram mesmo de rumar para o sul. As empresas em que trabalhavam mudaram as suas instalações, os serviços públicos fecharam e as hipóteses de trabalho foram-se tornando cada vez mais escassas.
É a vida, dir-se-á. As pessoas movimentam-se em razão de muitíssimas variáveis, mas, sobretudo, porque a sobrevivência assim o impõe - que o digam os milhões de nossos irmãos que tiveram de abandonar Portugal porque a fome apertava.
Não lhes perguntei, mas acho que os meus pais compreendem muito bem as pessoas que trabalham no Infarmed. Provavelmente, a maioria viveu sempre em Lisboa, tem cá a sua vida organizada, a família vive por aqui, os filhos gostam da escola. Melhor: não é preciso perguntar nem aos meus pais nem a quem teve de fazer este tipo de percurso o que isso custa. É normal que não queiram ir viver para o Porto e até estejam dispostas a deixar de trabalhar no instituto. Nada mais legítimo. E como estou certo de que são pessoas inteligentes, não farão, quando lutarem pelos seus interesses, a patética figura da presidente do Infarmed, que afirmou que a saúde mundial estava em causa se o instituto fosse para o Porto - pelos vistos, dizer barbaridades não impede ninguém de ter responsabilidades importantes.
A questão da mudança do Infarmed para o Porto é apenas um exemplo de que o discurso da vontade de descentralizar não passa de uma enorme treta - há quase um ano que foi anunciada a mudança, aconteceu alguma coisa? Uma treta que vem sempre acompanhada de outras, como "o assunto não foi bem estudado" ou "os impactos ainda não foram bem avaliados".
Já o que levou o Estado a concentrar tudo em Lisboa foi muitíssimo bem estudado. E, às tantas, foi mesmo. Foi a forma de ter o poder mesmo à mão de semear. A maneira de num país que, pelas piores razões, o tecido empresarial depende muito de o Estado forçar as empresas a concentrar os seus serviços em Lisboa.
O impacto desta brutal macrocefalia revela-se em tantas vertentes que não chegariam dez livros brancos sobre o tema para os enunciar. Menos serviços públicos, menos empresas, menos decisão local, menos investimento público, menos gente, menos inteligência residente, menos capacidade de intervenção política, menos decisões com conhecimento da realidade local, menos, menos, menos, até que sobra quase nada.
O assunto é política, bem entendido. De décadas e décadas de ausência de políticas públicas que estancassem a concentração de tudo e mais alguma coisa em Lisboa, acompanhadas de outras tantas décadas de vontade, também política, de trazer o tal tudo e mais alguma coisa para Lisboa.
Perderam os locais que foram ficando sem oportunidades e, logo sem gente, perdeu Lisboa, que se tornou macrocéfala, inoperante e ineficiente. Mas quem perdeu mesmo foram os portugueses, até os funcionários do Infarmed que não querem ir para o Porto. Tem sido toda a comunidade a perder. E, como já todos percebemos, nada vai mudar.
Na entrevista que deu à TVI, Rui Rio voltou pela milionésima vez a dizer que não sabia como o PSD ia votar o próximo Orçamento do Estado.
Claro que o mais certo é o PSD não o aprovar - há temas, por exemplo, fiscais em que não é previsível uma mudança de estratégia por parte do governo -, mas não é sério nem é próprio de um estadista dizer que se vai chumbar o que quer que seja sem saber o que alguém tem para propor.
Há gente que vive de tal forma enfiada no casulo partidário que se esquece de que os cidadãos estão cansados da política de trincheiras, daquela que faz de um adversário político um inimigo, da que rejeita liminarmente tudo o que venha do outro lado apenas porque vem do outro lado.
Não sei se esta recusa de erguer muros, de olhar mais para a substância das propostas do que para o cartão de quem as propõe ou de recusar entrar na voragem mediática que exige tomadas de posição ao minuto chega para ganhar eleições. Parece quase anacrónica, mas, por paradoxal que pareça, é uma lufada de ar fresco.
A entrevista de Mário Centeno ao Público não acrescentou quase nada ao que já sabíamos sobre o Mário Centeno dos últimos tempos - diferente do Mário Centeno pré-eleitoral e mais parecido com o que ainda não tinha descoberto a política partidária: contenção orçamental, pouca atenção às reivindicações dos professores (e bem, diga-se), descontração no discurso sobre retenções e muito foco no acautelamento do futuro. Tudo o que uma parte importante do PS e, sobretudo, os bloquistas e comunistas rejeitam. Não admira o incómodo que gerou nas hostes da geringonça.
Centeno, de facto, podia, com este discurso, ser o ministro das Finanças de Rui Rio. A questão é que não é Rio que faz o discurso de Centeno, é Centeno que faz o de Rio.
(Esta coluna vai a banhos. Até já.)