Conversas com Cientistas. Explicar as vacinas a quem tem dúvidas (e até a negacionistas)
Ainda os vídeos introdutórios com as explicações sobre a produção e a segurança das vacinas contra a covid-19 não tinham chegado ao fim e já o chat desta sessão de Conversas com Cientistas - Décadas de Ciência para Dias de Vacinas se agitava. "Se tudo é assim tão maravilhoso em termos de vacinas, como se explica que haja tantos relatos de graves efeitos adversos, como problemas dermatológicos, cegueira, problemas neurológicos graves e até milhares de mortes?", questionava um dos participantes inscritos na sessão, identificado como "Dream Percentage", mas que depois se revelou ser o coordenador do entretanto extinto grupo negacionista Médicos pela Verdade.
A iniciativa promovida pela Ciência Viva, em conjunto com vários centros de investigação portugueses, consiste num conjunto de 400 conversas online entre cientistas e o público sobre as vacinas contra a covid-19. Sessões de esclarecimento nas quais os investigadores estão preparados não só para explicar como a ciência conseguiu produzir vacinas para o SARS-CoV-2 em tempo recorde, mas também para enfrentar as dúvidas mais recorrentes relacionadas com a segurança e a eficácia dos fármacos e até mesmo a possível propaganda negacionista, como aconteceu nesta conversa a que o DN assistiu.
A sessão, dirigida pela cientista Mariana Ferreira, do Instituto de Medicina Molecular, começou com os "avisos legais" da praxe: "todas as perguntas são válidas", "este não é um espaço de consulta médica" sobre temas específicos de saúde de cada um, e o objetivo dos cientistas "não é convencer ninguém", só esclarecer.
Alfredo Rodrigues, que o país ficou a conhecer há poucos meses como o coordenador do grupo de médicos que contestava as medidas de combate à pandemia - e a quem a revista Visão destapou alegadas afinidades pessoais com o Chega (apesar de o próprio negar qualquer ligação com o partido de André Ventura) -, não escondia ao que vinha: procurar neste fórum rastilho para as suas teorias. "Como se explicam tantos milhares de médicos, virologistas, epidemiologistas, que contestam este tratamento genético (uma vacina não permitiria a infeção nem sequer a transmissão do vírus, o que estas "vacinas" não evitam)?", insistia.
Perante as intervenções do homem que gere a página "queroemigrar.com" no Facebook, onde promove estas e outras das suas teorias, com uma grande bandeira nacional como pano de fundo, a cientista do IMM foi contrapondo com "a informação científica, e não política, disponível". "E essa não se reflete naquilo que está a dizer", alertava Mariana Ferreira, recorrendo às informações oficiais disponibilizadas por agências de medicamento como a europeia EMA ou a FDA norte-americana sobre a segurança e os benefícios da vacinação disponível contra a covid-19, mostrando os dados relativos à eficácia demonstrada por cada vacina e recordando as décadas de investigação dedicada às técnicas que permitiram desenvolver as vacinas disponíveis, entre outros argumentos científicos.
"O princípio que serve de base a estas Conversas com Cientistas é precisamente esse: contrapor sempre com informação científica validada as dúvidas que forem levantadas, mesmo as mais radicais", refere ao DN a imunologista Margarida Saraiva, do Instituto de Investigação e Inovação em Saúde i3S (Porto), uma das cientistas ligadas a esta iniciativa que teve a primeira sessão no dia 20 de abril e termina amanhã (dia 30) - num total de cerca de 400 sessões online gratuitas destinadas a três tipos de público: escolas (do 3.º ciclo ao secundário), grupos ou entidades e público em geral.
"Essa sessão revela a importância de campanhas como esta, que conseguem chegar a todos, desde os curiosos aos negacionistas, passando pelo hesitantes", acrescenta a presidente da Sociedade Portuguesa de Imunologia. "Em todas as sessões até agora realizadas foi sempre possível garantir um espaço de respeito e de abertura. Diria mesmo que essa sessão terá sido uma exceção, em mais de 300 já realizadas, pois não temos registos de situações semelhantes."
De resto, a iniciativa surgiu precisamente para combater os sentimentos de insegurança e desinformação associados à vacinação contra a covid-19. Marta Moita, impulsionadora do projeto e investigadora da Fundação Champalimaud, lembra que "há tanta informação e desinformação relacionada com as vacinas, que o terreno é fértil para alimentar várias teorias". Por isso, nestas sessões, "o ideal é não ostracizar ninguém, mas assumir que qualquer pergunta é válida e merece uma explicação científica".
Nesse sentido, "foi dada formação a todos os voluntários que estão envolvidos nas sessões, nas quais foi abordado também como lidar com participações de alguma forma disruptivas", diz a neurocientista. E isso passa por "mostrar o sucesso das vacinas em doenças anteriores, explicar como interpretar a correlação entre a vacinação e a evolução das doenças, documentar a redução de mortes por covid-19 em lares de idosos desde que arrancou a vacinação ou, quando a interpelação foge do âmbito da sessão, convidar a deixar a questão nas redes sociais da Ciência Viva para resposta futura. Em última instância, se as intervenções não forem apropriadas, expulsar a pessoa da sala", refere.
Não foi preciso chegar a esse ponto. Apesar da insistência do antigo coordenador dos Médicos pela Verdade, e alguns outros elementos, no chat do grupo - onde ia partilhando teorias, nomes de virologistas "pela verdade" ou ligações para vídeos na plataforma Rumble (conhecida como um ecossistema preferencial para simpatizantes da extrema-direita e do antigo presidente norte-americano Donald Trump) -, a autorregulação funcionou e a conversa prolongou-se por mais de uma hora e meia, entre dúvidas sobre a capacidade das vacinas para travar realmente a infeção e a transmissão do vírus, questões sobre a duração da imunidade conferida, sobre o papel da vitamina D e várias preocupações mais pessoais. Porque, apesar do aviso inicial de que estas sessões não são consultórios, é muitas vezes isso que as pessoas procuram: "É seguro para quem toma aspirina?" "Quem tem asma pode tomar?"
Com uma semana já decorrida, a iniciativa tem-se revelado um sucesso. Margarida Saraiva revela que, "atendendo à média de inscrições para cada sessão, estas Conversas com Cientistas chegarão a cerca de 12 mil pessoas". Marta Moita acrescenta que das cerca de 400 sessões agendadas "a grande maioria esgotou logo nos primeiros dois dias". E a experiência tem sido "muito gratificante", diz, dando o exemplo da sessão feita com professores da cooperação em Timor que estavam muito hesitantes sobre a vacina e, depois da conversa com a cientista da Champalimaud, "enviaram feedback, felizes, a dizer que já foram todos vacinados e a agradecerem a sessão".
Os cerca de 1500 inquéritos já devolvidos pelos participantes permitem "aferir uma reação muito positiva", salienta Marta Moita, partilhando alguns dos dados obtidos até aqui. Por exemplo: "70% dos inquiridos dizem que viram respondidas todas as dúvidas e 25% que tiveram resposta a algumas das dúvidas". Em relação ao grau de hesitação dos participantes em tomar a vacina, questionada também no início e no final da sessão, "os dados ainda não estão completamente tratados, mas tem havido uma evolução no sentido de uma menor hesitação no final das sessões", adianta Marta Moita. Um sinal de esperança, apesar do elefante negacionista na sala.