Novo presidente enfrenta Brasil dividido em dois e Congresso partido em 30

Jair Bolsonaro ou Fernando Haddad? Ganhe quem ganhar neste domingo, tenha a vantagem que tiver, o Brasil continuará desunido. E dificílimo de governar sem recorrer às velhas práticas clientelistas que os eleitores tanto queriam ver extintas.

O próximo presidente do Brasil pode esquecer as expressões "estado de graça" ou "lua-de-mel". Seja eleito o favorito Jair Bolsonaro, do PSL, ou ganhe a votação o outsider Fernando Haddad, do PT, um deles vai enfrentar logo de caras, respetivamente, 44% e 52% da população de brasileiros que, "em nenhuma circunstância", lhe dariam o voto, a julgar pelas sondagens mais recentes. Depois, para governar, terá de encarar a selva partidária de 30 partidos, um recorde de fragmentação na história já de si superfragmentada da democracia brasileira.

Comecemos por aqui. Na Câmara dos Deputados, em vez dos incríveis 25 partidos que compuseram a legislatura 2015-2019, a próxima terá agora 30 forças diferentes, umas de direita, outras de esquerda e outras - a maioria - a quem tanto lhes faz. Note-se que, apesar de ser o maior grupo parlamentar, o PT de Haddad, com os seus 56 deputados, não vale mais do que míseros 10,9% do total de eleitos na câmara baixa do Congresso. O PSL, nova segunda força na casa, com 52 eleitos, representa 10,1% dos 513 deputados.

O novo presidente, que sairá de um desses partidos, tem pois apenas essa minifatia do bolo parlamentar garantida. Falta assegurar mais 40% para aprovar projetos ou, nos casos em que são exigidos dois terços do Parlamento, mais 56%.

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"Não há nenhuma bancada de facto com uma votação mais expressiva do que as outras e em posição de facilmente definir a governabilidade, todo o mundo de entre esses 30 partidos vai ter alguma coisa para dizer e há uma possibilidade ainda maior de traição nas votações", sublinha ao jornal Extra Sílvio Cascione, cientista político do grupo Eurasia.

Ou seja, a equipa de coordenação política do novo presidente terá de enfiar a mão no lodo das exigências dos 30 partidos. Ou seja, terá de garantir a governabilidade do país à custa de nem sempre saudáveis negociações. Ou seja, terá de recorrer ao velho clientelismo baseado na troca de apoios por cargos suculentos na estrutura do estado. Ou seja, manterá a prática dos últimos presidentes que resultou, por exemplo, no mensalão do PT, em que deputados recebiam uma mesada em dinheiro público para votar a favor do governo, ou na compra de parlamentares a céu aberto efetuada pelo presidente cessante Michel Temer (MDB), para se salvar das duas denúncias de corrupção.

"O governo vai encontrar o país sem margem orçamental para atender às exigências todas", afirma o analista político Antonio Queiroz. O novo presidente terá, porém, um ativo forte: a sua assinatura. Através dela poderá distribuir 24,6 mil cargos de sua confiança pessoal na máquina pública logo depois de tomar posse e assim ir conquistando o Blocão, como é conhecido o grupo imenso de deputados que se dispõe a votar a favor do governo ao preço de um ou mais jobs for the boys.

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Bolsonaro, apesar de o seu PSL, como vimos, não representar mais de 10,1% da Câmara, tem uma vantagem: já costurou acordos, mesmo sem sair do condomínio de alto padrão na Barra da Tijuca, zona oeste do Rio de Janeiro, onde mora, com representantes das principais frentes parlamentares. Por frentes parlamentares, entenda-se lóbis que agem, muitas vezes, com mais coesão do que os partidos e que têm na Bancada da Bíblia, na Bancada do Boi e na Bancada da Bala alguns dos seus expoentes. Ora, os evangélicos, os agropecuaristas e, claro, os militares, que representam essas três bancadas, estão ao lado do capitão reformado.

Ele, cujo discurso é o de "acabar com tudo isso aí", um dos seus bordões preferidos, tem entretanto um grande desafio pela frente: cumprir, apesar da esperada pressão dos partidos que se vão aliar a si em troca de cargos e dinheiro, a promessa de um executivo enxuto, com 15 ministros apenas. Os seus eleitores, ansiosos por mudança nas práticas clientelistas, estarão atentos.

Mas fora de Brasília Bolsonaro, caso eleito, vai enfrentar um país dividido, em parte por causa do seu discurso extremado, que lhe vai valendo 44% de rejeição, um valor anormal para um (eventualmente) presidente em início de mandato. O mesmo, ou pior, sucede com Haddad, desaprovado por 52% por culpa da saturação popular com os governos do PT.

Essa divisão não é apenas percetível pela taxa de objeção aos candidatos. Segundo levantamento do jornal El País, edição Brasil, o candidato do PSL foi o mais votado em 95% dos municípios mais ricos, enquanto o do PT prevaleceu em nove de cada dez dos mais pobres. O fosso é também racial: sete em cada dez dos municípios com maioria não branca escolheu Haddad, 90% das cidades com maioria branca preferiu Bolsonaro.

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Se a fragmentação parlamentar já não é novidade na política brasileira - apenas se agravou agora -, a divisão por salário ou cor da pele também não é propriamente inovadora - apenas se agravou agora. Em texto publicado no DN a 27 de outubro de 2014, o dia seguinte à eleição ganha por Dilma Rousseff, do PT, a Aécio Neves, do PSDB, já se escrevia que "a presidente eleita tem consciência de que vai pegar num país dividido ao meio".

"Não apenas do ponto de vista eleitoral mas também geográfico e socioeconómico. A candidata do PT venceu com larga margem no norte e nordeste, regiões mais carentes, e entre os que ganham até cerca de 1500 euros; perdeu, com folga, para o candidato do PSDB no sul, mais modernizado, e entre os brasileiros com maiores rendimentos. Durante a campanha eleitoral, às vésperas do sufrágio e agora no rescaldo da vitória do PT, o clima no país foi de crispação com o velho discurso de ricos contra pobres e de sul contra norte perigosamente revisitado."

De 2014 para 2018, Dilma, entretanto, morreu politicamente, ao ser alvo de impeachment em 2016 e ao perder a eleição para o Senado nos últimos dias. E Aécio também, ao ser apanhado em cheio pela Operação Lava-Jato e ao tornar-se um anónimo deputado entre 518. Mas, de resto, ascensão da extrema-direita, ocupando o lugar do PSDB, e aumento da reprovação ao PT à parte, as características do Brasil não mudaram tanto assim em quatro anos.

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