Viagem a uma noite do passado

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Viajar, perder países,
ser outro constantemente.

Fernando Pessoa

Dei o título de "Viagens dentro de casa" a estas crónicas justamente porque nestes tempos de pandemia a própria viagem se confinou. Deixámos de viajar pelo prazer de viajar, pelo sabor de perder países e de não pertencer a ninguém nem a si próprio, como bem definiu Fernando Pessoa num seu poema. Pôr confins na viagem é matar o estranhamento que a viagem é.

Dentre as viagens que podemos fazer dentro de casa tomemos as da imaginação e as da memória como percursos e encaremos hoje uma viagem na memória. Veremos aí como pode perdurar a estranheza de nós connosco.

No dia 25 de novembro de 1975 eu recebi um telefonema de Melo Antunes: o António Franco iria buscar-me a casa, com os salvo-condutos necessários para circular durante o recolher obrigatório, a fim de cumprirmos uma missão que o António me explicaria.

Dessa estranha noite lembro as patrulhas militares que nos mandavam parar, soldados assustados de não saber o que podia acontecer, olhares distantes de quem não sabe o que está a fazer o interlocutor que de dentro do carro lhe estende os papéis.

Há meses que estava dentro das nossas expectativas a possibilidade de uma guerra civil em Portugal. Aqueles soldados que nos devolviam os documentos não sabiam de que lado viriam eles e viríamos nós a estar, quem seria o amigo e quem passaria a ser o inimigo, quais seriam os campos que viriam a enfrentar-se. Olhavam para nós como quem se despede.

Esse que era eu dentro do carro que o António conduzia, como o reconhecerei hoje sem dizer este sentimento forte de estranheza? Um miúdo de 24 anos atravessava a noite confinada de Lisboa, com o amigo mais velho, para entregar a Melo Antunes aqueles papéis que iam sendo recolhidos por vários lugares da cidade. Estranha viagem com personagens que dificilmente reconheço hoje, perdidos no cinzento mais cinzento de uma noite cinzenta.

Nós não éramos bem como Fabrício Del Dongo, personagem de Stendhal que atravessou a batalha de Waterloo sem saber bem o que se passava: sabíamos qual era a nossa missão e o seu objetivo. Mais nada, claro, porque é assim nas batalhas. Nem pretendo que tenhamos desempenhado um papel histórico mais importante do que o daqueles que carregavam em Waterloo as munições para os artilheiros. Nem quero marcar um risco na história com o meu nome e o do António, como aqueles turistas que vandalizam os monumentos com a sua assinatura.

O PCP não foi ilegalizado nessa noite e é isso que importa para a história. Já Napoleão, esse, foi derrotado em Waterloo. Fabrício perdeu mais do que nós...

Julguei que alguns poderiam achar "sem tom nem som" estas prosas que aqui tenho publicado. Viajar dentro de casa, assim em roupão e chinelas, mais facilmente nos conduz a suaves digressões povoadas de autocomplacência e eivadas de ceticismo do que à manifestação muito séria da verdade. Por isso pensei que viajar na memória pudesse trazer à escrita factos nítidos e claros.

Enganei-me: da névoa da memória emerge essencialmente uma estranheza. Que fazemos nós ali, que mundo é aquele? Sou eu aquele rapaz de 24 anos que leva papéis ao seu major? E, no entanto, aquela batalha existiu. E dela fomos feitos.

Às memórias de Ernesto Melo Antunes e António Franco

Escritor e diplomata

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