"Se casos aumentarem temos tecnologia para fazer 600 testes dia, o limite são as pessoas"
O tempo não para no serviço de patologia clínica do Centro Hospitalar Universitário Lisboa Central (CHULC) desde que o SARS-CoV-2 invadiu o mundo no início deste ano. "Ainda não se sabia bem como é que o vírus se propagava e já nós estávamos a analisar amostras para fazer diagnósticos", conta Carlos Flores, o diretor do serviço.
Se antes o ritmo era marcado pela atividade de rotina e pela urgência das 08.00 às 20.00 e das 20.00 às 08.00 do dia seguinte, agora é marcado sem interrupções para as duas atividades, 24 horas sobre 24 horas. É preciso dar resposta ao SARS-CoV-2 , mas também aos outros vírus que não desapareceram da comunidade. "Há outros vírus", diz o médico de patologia clínica, que continuam na comunidade e há que diagnosticar e acompanhar doentes com VIH, hepatites, gripes, encefalites, sífilis e não só.
O mundo não parou com a covid-19, ou melhor quase parou, mas teve de se reorganizar em todas as dimensões, inclusive à escala de um dos maiores serviços laboratoriais hospitalares do país e de referência para toda a zona sul, como é o do Lisboa Central. Nele estão reunidos os laboratórios das várias unidades que integram o centro hospitalar - São José, Santa Marta, Curry Cabral, Capuchos, D. Estefânia e Maternidade Alfredo da Costa - e uma equipa de 30 médicos e 98 técnicos. Destes, quatro médicos e 14 técnicos estão só dedicados ao trabalho com o SARS-CoV-2.
Na primeira fase da pandemia, como refere o diretor de serviço Carlos Flores, "quase que parámos com toda a outra atividade laboratorial, mas tivemos que nos reorganizar para responder às 24 horas, estamos a fazê-lo e bem para todos os doentes, quer para os que entram pela urgência quer para os outros". E assume: "Somos médicos e técnicos hospitalares temos muito respeito pela resposta rápida, em tempo útil e real, para poder haver ação clínica, vivemos muito este ritmo, está-nos no sangue."
Questionado sobre o que vai acontecer se o país chegar mesmo aos dez mil casos diários, como estimavam há semanas os modelos matemáticos do próprio Instituto Nacional de Saúde Ricardo Jorge (INSA), o médico não tem dúvidas: "Estamos preparados, temos tecnologia, podemos fazer mais de 600 testes diários, a nossa capacidade é quase inesgotável, mas, como costumo dizer, há sempre um limite, e o limite são as pessoas. Os testes chegam ao laboratório para serem feitos e as máquinas trabalham, mas as pessoas têm de estar psicologicamente motivadas e com saúde para responder a tudo."
Por isso, reforça, "se isto descamba será a exaustão e poderemos pôr em risco os doentes covid e não covid, porque começamos a não ter possibilidade de dar uma resposta imediata e com a qualidade necessária", o que, não diz, mas terá obviamente consequências. Ou seja, testes que não tenham resposta rápida não permitem travar cadeias de transmissão, não permitem que os que têm de ser intervencionados de urgência não o sejam tão rapidamente, ou que sejam sem se saber se está perante um doente covid ou não e com maior pressão para os profissionais.
O diretor de serviço de patologia clínica reforça que quem está fora dos muros hospitalares tem de ter noção da pressão a que estão sujeitos os profissionais de saúde. "Há que aceitar o que as autoridades de saúde nos dizem, o que o primeiro-ministro nos tem vindo a dizer para se conseguir atenuar a transmissão do SARS-CoV-2", rematando.:"Somos profissionais de saúde. Fomos nós que escolhemos esta profissão e estamos cá para dar resposta. No serviço de patologia, existem meios para fazermos diagnósticos covid e não covid, agora as pessoas lá fora têm de nos respeitar. Somos humanos."
No laboratório onde falamos com Carlos Flores - médico desde 1983, sempre apaixonado pelo mundo das análises, "comecei a trabalhar num laboratório de análises andava no terceiro ano da faculdade e o meu interesse começou a nascer aqui" - o ambiente é mais calmo agora do que há poucas horas. De manhã, chegam muitas amostras para serem testadas, e todos os dias temos de enviar os resultados para a secretaria de Estado da Saúde para os números entrarem nas estatísticas diárias.
Àquela hora, há trabalho a fazer, mas é o momento em que a própria rotina hospitalar descansa um pouco da azáfama que começa pelas 08.00. À hora em que falamos, pouco depois das 14.00, nas 'ruas' do Curry Cabral há médicos, enfermeiros, assistentes operacionais que saem dos serviços para apanhar um pouco de ar, mas de máscara no rosto, outros almoçam, outros ainda que ainda não podem parar, porque há mais a fazer. Por todo o lado, as normas de segurança e os circuitos covid e não covid estão bem assinalados. Todos sabem que têm de ser respeitados.
No laboratório de patologia clínica, ainda mais. Ali, naquele espaço, está instalado um dos laboratórios de segurança máxima para doenças emergentes, como o ébola e o SARS-CoV-2. O espaço divide-se em várias salas e também com circuitos distintos para as amostras de covid e não covid. "São circuitos que não se cruzam, estão muito bem delimitados", argumenta Carlos Flores. As amostras de doentes covid entram por um lado, as de outras doenças por outro. Todos os médicos e técnicos usam equipamentos de proteção individual, porque o pior que poderia acontecer era algum ficar doente.
Logo à entrada, pelo lado covid, o médico mostra a câmara de segurança máxima que foi usada com muita frequência na primeira vaga, "agora já não é tanto", explica. "Sempre que há uma amostra respiratória inferior, o técnico entra, tem uma câmara de segurança onde se veste, e só depois ultrapassa a outra porta para trabalhar a amostra. Se, entretanto, está lá dentro e aparece uma outra amostra recebe-a pela adufa, não sai".
Carlos Flores conta-nos que aquela câmara é um laboratório P3, de nível de segurança máxima, criado para doenças emergentes na altura em que o Ébola apareceu. Está ali instalada por "o Curry Cabral ser uma unidade de referência para as doenças infecciosas".
"No início recebíamos as amostras em três contentores, num contentor primário, secundário e terciário. Metíamos dentro do P3 e as amostras eram inatividades e trabalhadas, mas, à medida que fomos conhecendo a forma de contágio do vírus, foram aparecendo os métodos e meios de inativação, como a zaragatoa".
O laboratório do CHULC está equipado com uma máquina "toda automatizada que só trabalha zaragatoas. É o método que está a ser mais usado nesta segunda vaga da pandemia. A recolha é efetuada e a amostra é colocada num meio de conservação. A partir do momento em que a zaragatoa é metida naquele meio é enviada para o laboratório e é preciso todo o cuidado para não se contaminar ninguém, afirma.
O equipamento tem capacidade para analisar de uma só vez 94 amostras, "quanto mais testes fizermos, mais rapidamente teremos resultados", o que pode acontecer em duas horas e meia a três horas". Na região sul do país, "só nós e o Hospital Santa Maria temos esta máquina, que nos permite analisar mais testes de uma só vez e com respostas em menos tempo".
Mas no laboratório do Lisboa Central há também um pequeno aparelho para testes rápidos, com respostas em 45 a 60 minutos. Testes que chegaram pouco depois da pandemia, em abril março, segundo nos dizem, e que são uma mais-valia, sobretudo para os doentes urgentes e emergentes.
Ao laboratório do CHULC chegam amostras não só de todas as unidades que integram o centro hospitalar, como de outras unidades da região que não têm capacidade de resposta nesta área, como amostras recolhidas pelo INEM em lares, escolas e em outros locais, como de todos os centros de saúde da área que servem, cujas colheitas são feitas na unidade de São Lázaro.
Ao todo, foram já realizados mais de 95 mil testes desde o início da pandemia até agora para diagnóstico à covid-19. E, se na primeira vaga, a taxa de positividade rondava os 4% a 5%, agora vai até aos 13%, "o que é muito, significa que a transmissão do vírus na comunidade é elevada", o que, mais uma vez, leva Carlos Flores a repetir: "O melhor que conhecemos deste vírus é a sua forma de contágio e de transmissão", portanto, "temos de fazer o que nos dizem, temos de confinar, ficar em casa, respeitar o recolher obrigatório, o uso obrigatório de máscara e manter a distância física. Só assim é que conseguiremos diminuir esta percentagem de positividade. Esta é uma responsabilidade individual".
No laboratório que dirige, a média diária de realização de testes é agora de 500, embora haja dias, como aconteceu esta semana, que ultrapassem os 700 e com uma taxa de positividade superior a 11%. Esta é a grande diferença entre a primeira e a segunda vaga: "Fazem-se muitos mais testes. Há muitas pessoas que vão diretamente aos serviços de urgência com alguns sintomas e sem passarem pela linha SNS24 ou pelos centros de saúde. Depois, há os outros doentes que chegam com outras doenças e que têm de ser despistados à covid-19".
Para responder a todos os doentes, covid e não covid foram anexadas às instalações já existentes avançados de tendas onde tudo é tratado para a colheita de doentes covid-19. Os restantes doentes continuam a dirigir-se às mesmas instalações. Mas se na primeira vaga havia um perfil de pessoas mais velhas a fazerem testes, agora o perfil dos doentes é bem mais jovem. A estatística recolhida no laboratório revela que dos 95 mil testes feitos, 54,7% foram a mulheres e 45,2% a homens. No entanto, há mais homens positivos, 8,3%, do que mulheres, 7,7%.
A maioria dos doentes foi testada através da urgência no Hospital de São José, 17,9%, 10,9% na urgência do Hospital Pediátrico Done Estefânia e 1,5% na urgência da Maternidade Alfredo da Costa 1,5%, sendo que a taxa de positividade é mais elevada na faixa etária dos 20 aos 49 anos, atingindo mesmo 20% nas pessoas com idades entre os 20 e os 29 anos.
No Curry Cabral o laboratório está dividido em várias salas, ao lado do laboratório P3, está a secção da parte analítica, para as amostras trabalhadas em fluxo laminar e extratores automáticos, e um pequeno aparelho de testes rápidos. Na outra sala ao lado, são tratadas todas as amostras que nada têm a ver com a covid-19.
Os indicadores de resposta do laboratório deixam Carlos Flores satisfeito, "têm sido dos melhores", referindo: "Os tempos de resposta ao doente não covid têm sido absolutamente idênticos aos que tínhamos antes da pandemia. Nos casos de emergência temos uma resposta entre os 57 minutos e a 1 hora e 13 minutos. Na resposta ao covid, os testes de biologia molecular atinge no máximo oito a dez horas, mas nos testes rápidos respondemos entre 45 a 50 minutos".
O que em patologia clínica é um tempo excelente, sobretudo quando se pensa que se está a responder "a uma doença que tem meses", que ainda há muito por descobrir e que nos mantém a todos na expectativa. "Estamos cá para responder a todas as situações, mas psicologicamente estamos como todos os outros portugueses cansados e na expectativa", desabafa Carlos Flores.
Os testes que são feitos à covid-19 dividem-se em dois tipos: os de biologia molecular e os imunológicos. Nos de biologia molecular, também conhecidos por testes de PCR, há testes rápidos e menos rápidos - uns são sujeitos a métodos totalmente automatizados, outros são testes "semiautomatizados porque também têm intervenção humana, e só são usados se houver alguma avaria no equipamento automatizado", explica Carlos Flores.
"Os testes rápidos de biologia molecular têm orientações muito definidas, porque são usados em situações urgentes e emergentes. Por exemplo, um doente que chega e que precisa de ir para o bloco com urgência e tem de ser despistado à covid, uma grávida em trabalho de parto, enfartes que precisam de ir para salas de hemodinâmica, etc. Em todos os doentes que têm alguma intervenção invasiva de urgência são usados estes testes rápidos". Testes que, Carlos Flores, diz que são uma mais-valia pela resposta rápida que dão, de 45 minutos e uma hora.
Ali também são feitos testes imunológicos de pesquisa de antigénio, que "é uma pesquisa rápida e que nos dá resultados entre 15 e 30 minutos. Estes testes estão a ser utilizados, mas ainda são muito individualizados, têm de ser feitos um a um".
Os imunosserológicos também estão a ser usados, mas estes, e como diz o médico, ainda serão mais usados após uma vacina. É através destes que se deteta se a pessoa desenvolveu anticorpos ao SARS-CoV-2, para se perceber que tipo de imunidade está a ser criada nos doentes que sobreviveram à doença e com a própria vacinação.
O SARS-CoV-2 veio introduzir mudanças na medicina. Disto, não há quem duvide, a patologia clínica não é exceção. À medida que a pandemia avança, novos métodos para diagnosticar a doença e mais rápidos vão aparecendo. Neste momento, já há novos testes de biologia molecular, são os multiplexos, que nos permitem verificar, em simultâneo e só com uma amostra, se o doente tem covid ou se tem gripe".
Mas não são só os métodos que têm mudado, a pressão e o ritmo também, na primeira vaga houve necessidade de mobilizar mais pessoal para o laboratório do CHULC, agora não, tudo está a funcionar com a equipa que tinham. "Organizámo-nos e preparámo-nos", diz o diretor de serviço.
Para Carlos Flores, o importante é a expectativa que existe em torno das vacinas que vão ser lançadas, pela doença, mas também porque "estamos psicologicamente cansados, desde março que trabalhamos consecutivamente, não paramos". Por isso, e como tantos portugueses, "estamos ansiosos que chegue a vacina e que estas estatísticas diárias com milhares de infetados deixem de existir".