Helena Carreiras. Alma de trekker e as montanhas como inspiração de vida

A ministra da Defesa não precisa de ter voz grossa para saber escolher o melhor rumo para as nossas Forças Armadas. Tem conhecimento profundo da realidade. E a determinação e resistência de quem sobe montanhas.
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O facto de ser a primeira mulher ministra da Defesa Nacional e o facto de se ter dedicado a estudar a questão de género nas Forças Armadas, desde que as mulheres começaram a cumprir o serviço militar, nos anos 90, colocam, logo à partida, Helena Carreiras na história.

Mas a partir do dia em que tomar posse será ela quem terá de definir também como quer ser recordada nessa história - pelas decisões que tomar, pelas opções que fizer e pela forma como souber impor o seu conhecimento, como investigadora que dedicou o seu percurso académico a estudar os militares, as estratégias e as políticas de defesa do ponto de vista sociológico.

Helena Carreiras é socióloga, doutorada pelo ISCTE (onde é professora), casada com um argentino que conheceu em Florença quando, depois de um divórcio, tinha decidido que a sua prioridade de vida era a carreira académica. A vida prega destas partidas e acabaram por seguir juntos e ter dois filhos, Pedro e Carolina, hoje adolescentes.

A serenidade que, em intervenções ou entrevistas, emana desta alentejana, filha de dois professores primários que passou a infância na pequena vila de Alpalhão (concelho de Nisa), pode ser enganadora quanto à sua real força interior.

Helena Carreiras é uma trekker e alguém que caminha e sobe montanhas testa a sua determinação e resistência - capacidades que podem ser armas poderosas nas novas funções, principalmente no atual contexto geopolítico internacional.

Citaçãocitacao""Acho que toda a gente devia ir, em algum momento da vida, às montanhas. Obriga a confrontar-nos connosco próprios, são lugares áridos, difíceis, onde estamos em grupo e dependemos uns dos outros"

"Acho que toda a gente devia ir, em algum momento da vida, às montanhas. Obriga a confrontar-nos connosco próprios, são lugares áridos, difíceis, onde estamos em grupo e dependemos uns dos outros. São um teste, em situações limite, à capacidade que temos de ser solidários, ajudar outros, ver o interesse comum", revelou numa entrevista à Fundação Getúlio Vargas em 2011.

Percorreu mundo a subir às montanhas e apesar de, nos últimos anos, não ter voltado aos Himalaias, aos picos da Europa ou à Turquia, "a alma de trekker continua viva", garante.

Helena Carreiras, atual diretora do Instituto de Defesa Nacional (a primeira mulher também) lembra ainda nesta entrevista, revelando até algum sentido de humor, as reações que foi recebendo quando, no âmbito da sua investigação académica sobre a integração feminina nas Forças Armadas, entrou no meio militar.

"Olhavam-me como mulher, como algo estranho, com alguma desconfiança. Deve ser feminista! Portanto, cuidado. Não era muito popular entre os militares", conta.

Não haja dúvidas que quando o seu nome foi anunciado para a pasta da Defesa, terá havido semelhantes exclamações, apesar de já ter passado um quarto de século desde aquela interação.

Para já, o género não vem ao caso, quando há uma guerra na Europa, quando toda a estratégia de defesa da União Europeia e da NATO está a dar uma volta de 180 graus e quando Portugal ainda está muito longe do objetivo de atribuir à Defesa 2% do PIB (cerca de 4 mil milhões, quase o dobro do atual), um compromisso assumido na Aliança Atlântica em 2014.

Quatro dias antes de ser nomeada, numa entrevista ao DN, Helena Carreiras expressava bem a importância do momento e deu pistas para a sua linha de ação. "Esta guerra veio mostrar, de forma particularmente violenta, que não existe segurança sem capacidade de defesa. E não existe defesa sem recursos. Nas palavras do general Cabral Couto, "é preciso comprar a gabardine no verão", caso contrário o inverno pode apanhar-nos desprevenidos e as gabardines serão então muito mais caras. Importa, por isso, demonstrar como é vital o processo de modernização das nossas Forças Armadas, tanto no plano da operacionalidade e dos equipamentos como no plano da valorização das pessoas e da atratividade da profissão militar. Essa modernização é também fundamental para sermos parceiros credíveis nas organizações internacionais a que pertencemos. Temos que estar dispostos a pagar o preço deste processo. Não pagar sairá muito mais caro. Poderemos ter que pagar com a nossa soberania e com nossa liberdade", declarou.

E é nesta gestão de recursos e na redefinição de prioridades na revisão da Lei de Programação Militar (LPM)que decorrerá já neste ano, que Helena Carreiras poderá ter a sua primeira prova de fogo.

O professor de estratestratégia e estudos de guerra geopolítica na Universidade Católica, Francisco Proença Garcia, destaca-a como "uma pessoa muito qualificada e conhecedora do meio militar, muito serena, mas também muito determinada. Ninguém pense que lhe faz a cabeça. Decididamente que é uma mulher de armas".

Concorda que "vai ter já um primeiro desafio que é a nova versão da LPM, tendo em conta os novos conceitos estratégicos da UE e da NATO". Acrescenta que será Helena Carreiras quem vai "acompanhar e implementar a nova legislação que reestruturou a estrutura superior das Forças Armadas, o que pode ser muito interessante".

O General Duarte da Costa, presidente da Autoridade Nacional de Proteção Civil, que assume uma "grande admiração" por esta "grande senhora".

"Tem uma capacidade espantosa de gerar consensos, o que é muito importante nesta área de Defesa. Tem as ideias muito arrumadas e está muito bem preparada. Domina muito bem as matérias em que se envolve. É calma, serena. Conhece bem toda a gente ligada à área da Defesa. Se foi escolhida foi apenas por uma coisa: pelo mérito", sublinha.

"Vai ser uma ministra da Defesa à altura. Tem uma vida inteira dedicada a assuntos da Defesa Nacional. Reúne saber e capacidades", advoga também Marcos Perestrello, ainda presidente da Comissão de Defesa Nacional da Assembleia da República e eleito deputado pelo PS.

Considera que a sua escolha "no atual contexto, asegura uma continuidade, pois já estava envolvida nas políticas de Defesa, o que é bom nesta fase". Antevê como grandes desafios, "em função da nova realidade geoestratégica e das mudanças profundas que vão resultar da Bússula Estratégica da UE e do novo conceito estratégico da NATO, que será aprovado em junho, a revisão do nosso próprio conceito estratégico de defesa nacional e dos documentos essenciais que a partir daí serão definidos, como a LPM, tendo em conta em que medida se quer contribuir para a defesa coletiva no âmbito da NATO e da UE e que aspetos se deve reforçar".

Ana Miguel dos Santos, deputada do PSD, coordenadora da defesa nacional no grupo parlamentar social-democrata, entende que "o maior desafio que terá prende-se com a atratividade das Forças Armadas, um problema estrutural que vem desde o fim da guerra colonial".

"Enquanto não igualarmos os salários das forças armadas aos das forças de segurança, vamos continuar a assistir a uma diminuição crónica dos efectivos das forças armadas", assevera.

Esta especialista em Defesa, entende que outra das prioridades seria uma mudança nos critérios de aquisição dos recursos materiais nas Forças Armadas. "Temos de ter a capacidade de revolucionar a aquisição de equipamentos militares. Tem de ser ter em consideração o avanço tecnológico para a guerra do século XXI, mas também a capacidade desse material ser dual, para poder ser utilizado em tempo de guerra e de paz".

Por fim, Ana Miguel dos Santos lança um repto a Helena Carreiras: "aprovar um novo estatuto para os deficientes das Forças Armadas que resolva os problemas crónicos que tem havido, por causa da legislação muito dispersa, no reconhecimento da situação muito específica desta pessoais, tratadas muitas vezes como se tivessem sido vítimas de um acidente vulgar. Não foram, ficaram feridas porque foram obrigadas a ir para a guerra. Temos uma enorme dívida de gratidão em relação a elas.".

O almirante Melo Gomes, porta-voz do Grupo de Reflexão Estratégica Independente (GREI), abre uma exceção ao silêncio que se autoimpôs, para comentar esta nomeação.

"Nós estamos numa situação muito sensível face à invasão da Ucrânia pela Rússia. Por isso, tenho evitado comentar publicamente a situação das nossas Forças Armadas. A personalidade indigitada para a Defesa tem, pelo menos, o conhecimento político-estratégico necessário para cumprir a função e certamente a sua prioridade não se ficará pela ideologia de género. Excluindo questões pessoais acho difícil fazer pior em relação à gestão anterior e, assim, desejo-lhe as maiores felicidades".

As prioridades, afirma, "são as do costume : dotar as Forças Armadas dos recursos humanos e materiais adequados à evolução da conjuntura político-estratégica atual e previsível".

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