A história das Olímpicas de Portugal rumo à paridade
"Durante a maior parte da história, anónimo era uma mulher". A frase é de Virginia Woolf e serviu de inspiração ao antigo atleta Cipriano Lucas para escrever um livro sobre a participação feminina de Portugal nos Jogos Olímpicos - Olímpicas - e dar-lhes "a valorização merecida". Ou pelo menos "fazer um livro de consulta" onde qualquer pessoa pode saber mais sobre cada uma das 118 mulheres que representaram o País na maior competição desportiva do Mundo em quase século e meio.
A participação feminina portuguesa iniciou-se em 1952, 40 anos após a estreia de Portugal em Estocolmo1912. Dália Cunha, Natália Cunha e Laura Amorim foram as pioneiras olímpicas - Maria Luísa Villalva foi selecionada, mas os pais não a deixaram ir. Competiram no concurso individual de ginástica aplicada, classificando-se, respetivamente, na 109.ª, 124.ª e 133.ª posição. A primeira medalha surgiu 32 anos depois, em Los Angeles1984 com Rosa Mota, que é também dona do primeiro ouro (Seoul1988). Telma é a única medalhada atual.
Habituado a escrever sobre sobre atletismo para o Diário de Notícias, o antigo jornalista percebeu que "havia um défice" de divulgação dos feitos das mulheres portuguesas no torneio Olímpico. "As atletas desapareciam do mapa desportivo e pronto. Os feitos desportivos ficavam guardados num livro e ninguém sabia mais nada delas. Desapareciam. Algumas por opção outras por esquecimento da sociedade e das instituições", afirmou ao DN o também ex-atleta, dando como exemplo a falta de biografias dos grandes atletas, como Carlos Lopes, Fernanda Ribeiro ou Nuno Delgado.
Desafiado por José Manuel Constantino, presidente do Comité Olímpico de Portugal, foi à procura da história delas. Foi preciso cruzar informação com várias fontes, incluindo com as próprias: "Algumas estavam completamente desaparecidas e há uma atleta madeirense, da vela, que ainda não se sabe dela."
Todas elas, com os seus percursos, histórias de superação, desilusões e vitórias, desbravaram o caminho pela igualdade na prática desportiva. Mas a realidade nua e crua é que Portugal tem apenas 118 atletas Olímpicas e quatro medalhadas - Rosa Mota, Fernanda Ribeiro, Vanessa Fernandes e Telma Monteiro. No total de 24 medalhas olímpicas, quatro são de ouro, e dessas, duas são de mulheres: Rosa Mota (maratona, 1988) e Fernanda Ribeiro (10 mil metros, 1996).
Os números "são um reflexo do que se passa na Sociedade" onde a paridade ainda é um "palavrão", segundo o autor do livro. Para o antigo atleta, "é assustador" olhar para as 33 federações olímpicas e só ver uma mulher como presidente (basebol - Sandra Monteiro).
A mudança está em marcha desde 2014, ano em que o COI começou a preparar a paridade que será atingida em Paris2024 (50% de mulheres). A ideia faria certamente o pai dos Jogos Olímpicos da Era Moderna - Pierre de Fredy, Barão de Coubertin - dar voltas no túmulo, tendo em conta o que disse há 121 anos: "Não aprovo a participação da mulher em competições públicas. Nos Jogos Olímpicos, o seu papel principal deve ser o de coroar os vencedores."
A frase tem de ser enquadrada no tempo. Na Antiguidade Grega, as mulheres nem no recinto dos Jogos podiam entrar e na Era Moderna começaram apenas como espetadoras e só em Paris1900 se estrearam como participantes (22 entre 975 homens). Não eram vistas como atletas e não tinham direito a medalha, apenas um diploma.
A história demorou tempo a fazer e foi necessária a ajuda de alguns homens. Em 1936 para evitar a humilhação de ver uma atleta judia ganhar uma medalha no salto em altura, Hitler baniu Gretel Bergmann do JO. Foi substituída por Dora Ratjen, a "rapariga esquisita", que um médico descobriu ser afinal um homem, Horst Ratjen, que disse ter sido "obrigado" a competir como mulher durante três anos.
Segundo o livro, que estava previsto para o Rio2016, mas só agora, no passado dia 8 de março, foi publicado e de forma digital, no site do Comité Olímpico de Portugal, a história fez-se graças a atletas como a britânica Charlotte Cooper, a primeira campeã olímpica (ténis, Paris1900). Ou à francesa Alice Melliat - rosto da luta pela integração feminina nos JO -, mas também às pioneiras e medalhadas portuguesas e à recordista Susana Feitor (5 participações em 21 anos). Em Londres, Portugal teve 32 atletas (em 76) no que foi o maior contingente feminino. Para Tóquio2021 estão classificadas 16, mas o apuramento ainda não fechou.
A meses de uns Jogos historicamente marcados pelo adiamento devido à pandemia da covid-19, Cipriano Lucas gostava de acrescentar mais umas biografias ao livro. "Otimista" quanto à participação portuguesa, o antigo jornalista refere "os bons resultados" conseguidos em tempo de pandemia, destacando Auriol Dongmo, Patrícia Mamona e Rochele Nunes. E com uma certeza: "O sucesso não se pode resumir a medalhas."
O Estádio Nacional sempre o seduziu. Era para lá que fugia muitas vezes quando começou com "as manias" das corridas a seguir ao 25 de Abril. Cipriano Lucas (57 anos) tinha uns 16 anos quando se sentou envergonhadamente nas bancadas do Jamor durante uma tarde inteira, a ver os rapazes que ali treinavam, até ter coragem e ir ter com eles: "Convidaram-me para me juntar a eles. Foi o que quis ouvir. Meteram-me a fazer salto em cumprimento e perceberam logo que aquilo não era para mim, até que me pediram para fazer uma corrida longa e destaquei-me. Fui fazer uma prova e bati o recorde do Torneios de Bairros (Benfica)".
Começou a sério na AD Oeiras, depois foi par o Benfica e representou ainda o Belenenses antes de ir para o Maratona, onde acabou a carreira. Começou nos 1500, mas acabou a fazer maratonas. Tem como melhor tempo 2.18 horas. Segundo ele , "era um atleta de terceiro plano (risos)", com o talento ofuscado pela concorrência de peso: Leitão e Ezequiel Canário, Carlos Lopes, Mamede ou os gémeos Castro.
Teve "o azar de levar" com três das maiores gerações do meio fundo e resolveu estudar. Seguiu História e ainda chegou a lecionar até ouvir Carvalho Santos do DN dizer, durante uma reportagem no Jamor, que o jornal precisava de uma pessoa para acompanhar o atletismo. E assim entrou no jornalismo e no DN, onde esteve até 2015.
Dália Cunha, a irmã Natália Cunha e Laura Amorim abriram o caminho à participação das mulheres portuguesas nos Jogos Olímpicos de Helsínquia em 1952 - 40 anos depois da estreia de Portugal (1912).
As atletas viajaram no famoso paquete Serpa Pinto, que serviu de hotel e ginásio. "Foi uma semana a bordo inesquecível. Só a equipa da ginástica, seis rapazes e três raparigas, treinámos no convéns. Levámos os aparelhos a bordo. Tínhamos as paralelas, a trave cavalo. Os movimentos livres faziam-se no espaço que sobrava, mesmo sem o estrado", contou Dália, numa entrevista citada no livro Olímpicas.
Dália tinha 23 anos e competiu no concurso individual de ginástica aplicada, classificando-se em 109.º lugar - Natália foi 124.ª e Laura 133.ª.
Filha de um sportsman da altura (Hélder Cunha), Dália viria a revelar-se uma atleta superdotada. Tinha 9 anos quando se iniciou-se no desporto, no tiro ao alvo, mas rapidamente ganhou medalhas no atletismo e foi convidada para ir para o Sporting por Moniz Pereira. Corria, lançava o peso, nadava, fazia equitação, toureava a pé e a cavalo, mas era uma apaixonada pela patinagem.
O sonho olímpico foi despertado por Joseph Sammer, um alemão que trocara Veneza pelo Ginásio Clube Português e que escolheu oito atletas para treinar. Uma era Dália, com quem viria a casar um ano após os Jogos de 1952. Foi mãe aos 28 anos e ainda voltou a competir e ir a Roma1960, onde voltou a ser 109.ª classificada.
Rosa Mota está entre as maiores referências desportivas de Portugal, junto a Carlos Lopes, Joaquim Agostinho, Eusébio ou Ronaldo. "A menina da Foz" é dona da primeira medalha Olímpica conquistada por uma mulher portuguesa. Um bronze em Los Angeles1984 e logo no ano de estreia da maratona como disciplina olímpica e do atletismo no feminino (32 anos após a estreia das mulheres portuguesas).
Nesse ano (Lopes conquistou o ouro e Leitão o bronze), a comitiva contou ainda com Aurora Cunha, Albertina Machado, Conceição Ferreira e Rita Borralho.
Foi aos 14 anos, no Futebol Clube da Foz, que se iniciou na modalidade, onde se superiorizou de tal forma que, entre 1982 e 1992, ganhou 14 das 21 maratonas que fez. Conhecida como "a menina da Foz", Rosa subiu ao topo do desporto mundial com perseverança, determinação e muito treino. Quando se sagrou campeã olímpica, em Seoul1988, e deu o primeiro ouro feminino ao País, já tinha 16 anos de atletismo.
As quatro condecorações com a Ordem de Mérito refletem o quão alto ergueu o nome de Portugal. Para dar seguimento ao seu legado abriu uma escola de atletismo com o seu nome no Porto para "formar campeões do dia-a-dia".
Telma Monteiro é uma das quatro medalhadas olímpicas: Rosa Mota (bronze e ouro), Fernanda Ribeiro (ouro e bronze), Vanessa Fernandes (prata) e Telma Monteiro (bronze). A judoca é a única medalhada que ainda está em atividade e foi a única a trazer uma medalha do Rio2016, onde foi porta estandarte. Uma honra dada apenas a nove mulheres e que já tinha merecido no encerramento de Londres2012.
O bronze, na categoria de -57kg, era a medalha que lhe faltava no vasto currículo e foi conquistada 12 anos após a estreia, em Atenas2004. "Lembro-me de ter chorado bastante quando fiquei em 9.º lugar porque para mim não fazia sentido ter perdido, na minha cabeça podia ter ganho uma medalha. Lembro-me de ter ficado muito triste como se não fosse espetacular aos 18 anos ter ido aos Jogos Olímpicos. Acho que vivi tudo com demasiada maturidade", confessou a judoca do Benfica, que pode igualar em Tóquio2021 as cinco presenças de Susana Feitor.
Depois de ter praticado atletismo e futebol, decidiu experimentar o judo aos 14 anos por incentivo da irmã Ana e o talento no tatami surgiu de imediato. O objetivo de Telma é "ganhar todas as medalhas possíveis". Para já tem 19...
isaura.almeida@dn.pt