"É preciso contrariar o egoísmo das empresas petrolíferas, mais poderosas até do que alguns governos"
O ponto de encontro é na Academia das Ciências de Lisboa, mas a conversa acontece no pequeno café junto à prestigiada instituição, fundada no século XVIII. Filipe Duarte Santos, cientista muito ligado à problemática das alterações climáticas, confessa frequentar este simpático Despensa da Academia, que também serve almoços. Desta vez, e por ser ainda manhã, ficamo-nos cada um por um café e uma fatia de um bolo de laranja acabado de sair do forno, reconfortante espécie de brunch a fazer companhia para duas horas de conversa sobre as preocupações ambientais deste geofísico, quando estamos a poucos dias de se celebrar os 50 anos da primeira Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente Humano, realizada em Estocolmo entre 5 e 7 de junho de 1972. Fico a saber que, na época, o meu convidado, embora já doutorado em Física Nuclear e com propostas para ser professor e investigador nos Estados Unidos, não tinha ainda despertado para os riscos do aquecimento global. Entre risos, Duarte Santos admite que as suas preocupações eram então um pouco mais pessoais: cumpria em Lisboa um serviço militar tardio (tinha 29 anos) e não estava afastada a hipótese de ir para África, para uma das três frentes da Guerra do Ultramar. "Safou-me no fim a minha miopia. Realmente, com as minhas dioptrias não podia ir dar tiros para África", explica o professor catedrático jubilado.
Sei pela leitura de uma biografia de Jorge Sampaio que o meu entrevistado é primo, mas fico surpreendido quando me diz que é pelo lado materno, judaico como no caso do antigo Presidente, que morreu no ano passado. Eram grandes companheiros de infância, filhos de duas irmãs, Fernanda, a mãe de Sampaio, e Regina, a de Duarte Santos. "Sou judeu por via materna. Se quisesse, podia abraçar a religião judaica naturalmente", explica o cientista, que para um recente livro de homenagem ao primo até voltou a investigar as origens familiares, os Benslimane e os Bensaúde, vindos de Marrocos no século XIX. "Os Bensaúde eram de Salé, porto perto de Rabat, e instalaram-se nos Açores. E os Benslimane eram de Meknes. Portugal aconteceu quase por acaso. No mundo árabe, quando as coisas estavam difíceis por causa de uma seca ou de problemas políticos, faziam uma razia - é uma palavra árabe - no bairro judaico. Um antepassado meu viveu mais de um ano escondido numa cave, até que em correspondência com um comerciante de Lisboa, o famoso Jerónimo Martins, este o aconselhou a trazer a família para Portugal, não para a capital, mas para o Algarve ou os Açores. Estávamos no início do século XIX, a Inquisição iria finalmente ser extinta em 1821", conta. Diz não haver documentos a provar uma ligação mais antiga a Portugal, como, relembra, no caso de Sam Levy, judeu turco de Esmirna que no século XX veio para Portugal e trazia a chave da casa que os antepassados tiveram de abandonar.
Filho de um escultor e de uma pintora, o professor Duarte Santos nasceu a 15 de março de 1942 no Hospital da Cruz Vermelha. O mundo estava em guerra, mas Portugal era neutral. Não se recorda de ouvir dos pais histórias de grandes dificuldades, mas admite que as possam ter vivido. A casa da família era em Campo de Ourique, nota, para logo acrescentar que lá ficava, sempre que vinha a Portugal, uma prima mais velha, que foi quem o incentivou a seguir a área de ciências: "Chamava-se Matilde Bensaúde e nasceu nos Açores. Era uma mulher admirável. Foi enviada para a Alemanha para fazer o liceu, depois a licenciatura foi na Suíça e o doutoramento em França. Fez pós-doc, isto antes da II Guerra Mundial, veja lá, numa universidade americana onde eu cheguei muitos anos depois a dar aulas, a Universidade do Wisconsin, em Madison. Havia lá uma placa com o nome dela. Influenciou-me muito. Ensinou-me a fazer um herbário. Íamos colecionar plantas silvestres nos arredores de Lisboa. Era fitopatologista e muito respeitada em Portugal, especialista na doença da batata e na doença dos citrinos, em especial das laranjeiras. Estudou a doença da batata em Montalegre, viveu lá, trabalhava com os agricultores. Deixou-me o seu microscópio." Das idas ao campo com a prima ficou até hoje a paixão pelas orquídeas silvestres e há uma associação que organiza visitas. Fico a saber que na Arrábida há muitas dessas plantas, que vivem nos pinhais e preferem terrenos calcários, e que um dos mais célebres livros de Charles Darwin é exatamente sobre a polinização das orquídeas silvestres.
Duarte Santos estudou no Liceu Pedro Nunes, depois na Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, onde tirou o curso de Geofísica, com disciplinas fulcrais como Oceanografia, Sismologia, Meteorologia, Climatologia. "Tive boas notas, mas ainda me lembro como no dia em que acabei a licenciatura estava no meu quarto cheio de pavor. O que iria fazer na vida? Os meus pais não tentaram dar-me sugestões. Eram artistas e deles ficou o desenhar e o pintar, que são das coisas que mais gosto de fazer, apesar desta minha vida infernal", relembra, entre risos. Acabou por ganhar uma bolsa atribuída pela NATO e passou um ano no Porto a estudar. Depois, nova bolsa permitiu-lhe fazer o doutoramento em Londres em Física Nuclear. Uma proposta para ir para os Estados Unidos não se concretizou porque, entretanto, recebeu de Portugal carta para, como mancebo, se apresentar para o serviço militar ou seria considerado refratário.
Já casado, veio com a mulher de mini até Portugal e, como demorou ainda algum tempo até ser chamado a fazer recruta em Mafra, arranjou emprego na Junta de Energia Nuclear, em Sacavém. A maior parte do serviço militar acabou por ser feito na Escola Prática de Administração, no Lumiar, e ficou-lhe na memória as dores de uma patrulha noturna, de 20 quilómetros, em que, de arma às costas, tinha em grupo de ir a vários pontos e finalmente regressar. "Ao princípio, por ser um velhote para eles, ninguém me chamava para um grupo. Acabei por ir com aqueles que tinham de correr para salvar a vida, evitar África. Corríamos e corríamos. Ainda houve quem na parte final me carregasse a arma, que as minhas pernas não podiam mais. Fomos tão rápidos que até disseram que tínhamos chamado um táxi", conta, de novo entre risos. Tenha sido o êxito daquela patrulha ou a miopia, de facto o cientista não foi nem para Angola, nem para Moçambique, nem para a Guiné.
"Soube da Revolução em 1974 por causa do vizinho de cima, que era um capitão que tinha estado na Guiné, onde foi ferido. Era fiel ao regime, um capitão mas não dos de Abril. Ele estava de serviço nessa noite em Monsanto e avisou a mulher do que se passava. E ela alertou-nos. Fiquei em casa ainda umas horas e depois fui para a rua. Foram dias fascinantes. Aquela festa toda do 25 de Abril. Ainda me lembro do 1.º de Maio. Claro, também me lembro de uns tempos depois, na universidade, serem os estudantes a examinar os professores, a exigir saber as suas credenciais políticas. Valeu que houve um professor, especialista em doenças mentais, que conseguiu que a normalidade triunfasse na medida do possível", conta. E mais risos.
Pergunto ao atual vice-presidente da Classe de Ciências da Academia e presidente do Conselho Nacional do Ambiente e do Desenvolvimento Sustentável, órgão consultivo do Ministério do Ambiente (aqui bem perto), se a importância da conferência de Estocolmo de 1972 é real ou simbólica. "É uma data importante, e que ficou marcada por uma frase de Indira Gandhi, numa conferência em que poucos líderes não-ocidentais participaram. O discurso da primeira-ministra indiana estava preparado e ela acrescentou uma frase que ficou célebre: "Mas não são a pobreza e as carências a maior forma de poluição?" A comunicação social pegou na frase e transformou a interrogação em afirmação e ficou evidente que as preocupações das economias avançadas com o ambiente eram um luxo vistas do resto do mundo. Passados 50 anos, o problema é o mesmo", sublinha o cientista, por isso é tão difícil uma ação global contra as alterações climáticas.
E o egoísmo não é só dos países, mas também das pessoas, mesmo nos países ricos. "É difícil passar a mensagem da preocupação ecológica. Escrevi há pouco um artigo para um livro sobre ética cujo título é O egoísmo e a sustentabilidade, sairá provavelmente também em inglês numa revista científica com dois coautores, e a tese que defendemos é que temos um mundo em que há realmente uma força muito grande do egoísmo racional e do egoísmo ético, que parecem palavras estranhas juntas mas que têm grandes defensores. Refiro aqui Ayn Rand, americana nascida na Rússia e cuja família teve de fugir da revolução comunista quando ela era adolescente. Começou na América por trabalhar no mundo do espetáculo, mas depois envolveu-se na política, próxima da extrema-direita. O seu livro A Revolta de Atlas foi um sucesso e Donald Trump disse ser uma das leituras que mais o marcou. Mas já muito antes o inglês Thomas Hobbes defendia o egoísmo como algo natural no homem", reflete o geofísico.
Recorda o movimento dos coletes amarelos em França, bem recente, em que nos meios rurais a reação a um aumento dos impostos sobre os combustíveis em nome da redução das emissões levou a uma violenta reação de quem ganhava pouco e não tinha alternativa ao uso do automóvel. A palavra de ordem depressa foi algo do género "como nos preocuparmos com o fim do mundo se não conseguimos chegar ao fim do mês". O professor Duarte Santos dá outro caso de egoísmo do homem perante o planeta: a tecnologia que permitiria nas centrais elétricas a carvão, como as duas que Portugal tinha, captar o dióxido de carbono, que depois de liquefeito seria introduzido no subsolo, por exemplo, em minas abandonadas. Adotar essa tecnologia significaria tornar a energia 30% mais cara, e logo nenhum governo dá esse passo. E quando perguntou um dia aos alunos se estavam dispostos a pagar esse extra, a resposta geral foi não.
O professor fala de sistema, de economia mainstream, a versão moderna do capitalismo. Da força enorme, "maior até do que a de muitos governos", da indústria petrolífera, que agora, com os altos preços do barril de crude por causa da guerra na Ucrânia, até já admite que não sabe o que fazer ao dinheiro. "Era possível fazer funcionar o mundo com energias renováveis, mas para isso teríamos de incomodar as empresas petrolíferas. E haveria um custo. E as pessoas perguntam: quem pagaria esse custo? O mundo continua com desigualdades extremas e há que ser mais solidário. Os acionistas das petrolíferas têm de ser mais solidários com o resto do mundo, mas isso é difícil quando uma guerra faz o seu produto vendido a 40 dólares passar para 100 e traz a bonança aos envolvidos", diz.
Foi nos Estados Unidos, provavelmente quando em 1981 esteve lá aproveitando um ano sabático na Universidade de Lisboa, que Duarte Santos despertou para a causa ambiental. Professor no Wisconsin e depois também em duas universidades da Carolina do Norte, incluindo a Duke, o cientista confessa ter adorado essas experiências americanas e sentir-se, na época, muito bem nas sociedades em que vivia. Também aí viu a pujança da ciência, em particular na sua área da física nuclear, do doutoramento e de investigação. Sobre o nuclear como alternativa aos combustíveis fósseis, Duarte Santos diz haver vantagens e desvantagens, mas que felizmente para o mundo muitos países têm esse tipo de energia e, portanto, com emissões menores. Nas desvantagens está a questão do armazenamento dos resíduos e do risco dos descuidos. "Chernobyl foi uma sequência de descuidos. Sabemos que podem acontecer, mas no caso de uma central nuclear esses descuidos têm consequências terríveis", explica. Sobre o tema, limita-se a ser pedagógico, não assumindo posição pública, mas considera a sociedade portuguesa sociologicamente contra a energia nuclear, por contraste com, por exemplo, a francesa, que no atual contexto sabe ter grandes vantagens sobre a Alemanha, que desistiu do nuclear e teve de procurar alternativas ao gás russo, o que com as sanções por causa da invasão da Ucrânia se tornou problemático.
Recusa ser um catastrofista e, pelo contrário, acreditar na capacidade de adaptação da humanidade, na sua resiliência, embora seguir no atual caminho signifique que, em média, a qualidade de vida no planeta vai baixar, mesmo que a riqueza dos tais 1% de super-ricos se mantenha ou até aumente.
Para conhecer melhor o pensamento de Filipe Duarte Santos recomendo o livro recente, publicado em inglês, Time, Progress, Growth and Tecnology. How Humans and the Earth are responding. E também a conferência na Academia de Ciências, na sua belíssima sala de atos, dias 6 e 7 de junho, para assinalar Estocolmo 1972. Os oradores são sugestões dos coorganizadores, que são o meu entrevistado de hoje e a professora Maria da Glória Garcia, e, além de sócios e sócios correspondentes, intervirão professores de todas as universidades públicas portuguesas. No primeiro dia falará o cardeal Tolentino Mendonça, no caso por Zoom, a partir de Roma. "Dois dias inteiros a falar de sustentabilidade", realça o cientista português. É a sua forma de desafiar o sistema.