Partido Comunista ou Partido Confucionista?

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Para se perceber a mentalidade da liderança chinesa neste momento histórico em que o Partido Comunista se prepara para celebrar, a 1 de julho, o centenário é preciso remontar não a 100, mas a 102 anos. O chamado Movimento de 4 de Maio, de início um protesto estudantil na primavera de 1919, em Pequim, contra o tratamento injusto dado em Versalhes à China pelos vencedores da Primeira Guerra Mundial, tornou-se no rastilho revolucionário que levou, em 1921, à fundação do PC Chinês na cosmopolita Xangai. Ou seja, foi mais uma humilhação à China, pois o Tratado de Versalhes cedeu território chinês ao Japão, que levou jovens intelectuais como Mao Tsé-tung a fundar um partido que se via como o salvador do país, no caos depois da queda da dinastia Qing.

E, quando digo que Versalhes foi mais uma humilhação para a China, estou a pensar numa série de episódios, que começaram em meados do século XIX e foram até datas próximas da proclamação da República Popular da China, em 1949. Um desses episódios é a Guerra do Ópio, feita pela Grã-Bretanha em nome da liberdade de comércio, mas na realidade uma imposição aos chineses da compra da droga produzida na Índia e que teve como bónus a conquista da ilha de Hong Kong; outro, em 1950, foi o envio pelos Estados Unidos da VII Esquadra para o estreito de Taiwan, em defesa do refúgio final dos nacionalistas de Chiang Kai-shek, derrotados na guerra civil chinesa. Pensemos em como Hong Kong e Taiwan, de formas distintas é certo, são vistas hoje como prioridades pela China e percebe-se o peso do passado. Macau, entreposto comercial tolerado pelos mandarins desde o século XVI, sempre foi um caso à parte, sublinhe-se.

Mao, à frente dos comunistas, acabou com os conflitos internos e restituiu dignidade à China na cena internacional, ao ponto de, em nome dos interesses geopolíticos, trocar os patronos soviéticos por uma aliança de conveniência com os americanos já no final da vida. Mas foi só com as reformas capitalistas de Deng Xiaoping que o país recomeçou a escalada na hierarquia das potências económicas, na qual foi número um até pelo menos ao reinado de Qianlong, contemporâneo da Revolução Francesa. Hoje, a China tem já o segundo maior PIB do mundo, e em 2020, em plena pandemia, foi a única grande economia a crescer.

É evidente que o partido liderado por Xi Jinping, reforçado pelos resultados económicos e por uma presença internacional crescente, cada vez menos tem de comunista. Pode-se falar de socialismo com características chinesas, mas na realidade é uma espécie de neoconfucionismo que rege os governantes: o partido tem obrigação de governar bem, o povo tem obrigação de seguir o partido por governar bem.

Seguro do apoio interno (Tiananmen é uma memória distante e muitos estudantes, mais do que democracia, hoje ambicionam é ser quadros do partido), o PC zela muito pelo prestígio internacional da China e está decidido a não aceitar mais humilhações, reais ou imaginárias. Ora, isso significa grande dificuldade em lidar com a China, não funcionando nem o desafio ostensivo (como fazia Donald Trump e agora faz também Joe Biden para defender a supremacia americana) nem a vassalagem, como alguns parecem preferir, fazendo lembrar os tempos dos tributos aos imperadores. Vão ser tempos complicados os que vêm aí, à medida que a China continua a ascensão, e segundo fórmula própria. Para já, muita atenção aos discursos de dia 1.

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