Não esquecer nunca a ameaça nuclear
Há dois anos visitei o Polígono de Semipalatinsk, no nordeste do Cazaquistão, onde ainda são visíveis apesar do mato rasteiro da estepe algumas das crateras deixadas pelas 460 bombas soviéticas ali testadas, incluindo a de 29 de agosto de 1949, que permitiu a Estaline acabar com o monopólio nuclear dos Estados Unidos. Também visitei a Faculdade de Medicina de Semey, a cidade mais próxima, onde fetos disformes guardados em frascos com formol mostram como as populações vizinhas sofreram com as radiações sem saberem com o que lidavam. Ainda há quem se lembre, entre os mais velhos, dos "cogumelos muito bonitos" que se formavam no céu a cada explosão, até a liderança do Kremlin ter decidido que os testes passavam a ser subterrâneos. Até hoje, o impacto na saúde de tantos e tantos testes nucleares continua por apurar, mas sabe-se que passa de geração em geração de cazaques e pode ir das malformações congénitas a diversas formas de cancro.
Neste domingo assinala-se mais um Dia Internacional contra os Testes Nucleares. E as Nações Unidas escolheram o 29 de agosto porque foi simbolicamente nesse dia, em 1991, que o Polígono de Semipalatinsk foi encerrado por decisão das autoridades cazaques. O fim da União Soviética, sobretudo depois do golpe falhado dos comunistas da linha dura contra Mikhail Gorbachev uns dias antes, estava anunciado e no final do ano o Cazaquistão tornar-se-ia uma república independente, presidida por Nursultan Nazarbayev.
Uma sucessão de acontecimentos pôs desde esse encerramento do local de testes o Cazaquistão, nono maior país do mundo, na primeira linha do combate pelo desarmamento nuclear. Assim, sob a liderança de Nazarbayev, até 1995 o país entregou à Rússia a totalidade do armamento herdado da União Soviética, mais de 1400 ogivas. Um acordo de cooperação com os Estados Unidos, no âmbito da não proliferação nuclear, permitiu também ao Cazaquistão selar ao longo das últimas décadas zonas perigosas do subsolo de Semipalatinsk e eliminar ou transferir outros materiais radioativos. O famoso polígono, com uma área equivalente à da Eslovénia, serviu ainda de local de assinatura de um acordo para manter a Ásia Central livre de armas nucleares, que foi assinado pelas cinco antigas repúblicas soviéticas da região (além do Cazaquistão, o Usbequistão, o Quirguistão, o Turquemenistão e o Tajiquistão). E em 2017, o Cazaquistão foi um dos mais ativos promotores do Tratado para a Eliminação das Armas Nucleares, sendo juntamente com a África do Sul as únicas potências ou ex-potências nucleares a apoiar um texto muito contestado pelos países donos de armas nucleares, atualmente nove.
Se pensarmos nos 30 anos decorridos desde o encerramento de Semipalatinsk, e sobretudo nos 25 anos passados desde a entrada em vigor do Tratado de Interdição Completa de Ensaios Nucleares, nem os textos internacionais nem as lições aprendidas com as terríveis explosões (primeiro que tudo as causadas pelas bombas de Hiroxima e Nagasáqui em 1945, mas também as dos testes no Cazaquistão, na Polinésia Francesa ou nas ilhas Marshall) conseguiram até agora êxito total. Paquistão e Índia fizeram testes em 1998 e a Coreia do Norte em 2006, 2009, 2013, 2016 e 2017, confirmando um estatuto de potência nuclear que só é atribuído também aos cinco membros permanentes das Nações Unidas (Estados Unidos, Rússia, China, Reino Unido e França) e a Israel.
Se ao longo das décadas houve algumas desistências do estatuto nuclear (caso também da Ucrânia nos anos logo a seguir à desagregação da União Soviética), também é verdade que nunca deixou de haver países com ambição de obter a arma, desde o Brasil e da Argentina no tempo das ditaduras militares até ao Iraque de Saddam Hussein e à Líbia de Muammar Kadhafi. Na atualidade, as grandes suspeitas recaem sobre o Irão, por muito que os seus líderes digam que só ambicionam dominar a tecnologia para uso civil (como fazem, por exemplo, a nossa vizinha Espanha, a Alemanha ou o Japão). Nos tempos de Barack Obama na Casa Branca, os Estados Unidos fizeram um acordo que permitia vigiar o Irão, mas Donald Trump rasgou-o por desconfiar dos ayatollahs, e Joe Biden, presidente desde janeiro deste ano, hesita quanto às exigências a fazer para ressuscitar o acordo. A complicar tudo, a acusação nesta semana de que o Irão terá a bomba em dois meses, proferida por Benny Gantz, ministro da Defesa israelita.
Num momento em que o mundo conhece momentos de especial agitação, mesmo se o Afeganistão nas mãos dos talibãs tem mais que ver com o terrorismo jihadista do que com o terror nuclear, é de valorizar o que fez o Cazaquistão nestes 30 anos: a construção de um Estado estável e responsável (desde 2019 é presidido por Kassym-Jomart Tokayev), envolvido na comunidade internacional, respeitador das minorias e pronto a desmentir ideias feitas sobre a Ásia Central e os países com o nome acabado em "stão". Não por acaso, a ONU decidiu agora transferir as suas equipas em Cabul para Almaty, a antiga capital cazaque, que fica a uns mil quilómetros do Afeganistão.