Tosh Minohara: "Perante a China, o Japão está fortalecido pela aliança com a América"

Professor de Relações Internacionais e Estudos de Segurança na Universidade de Kobe, Tosh Minohara analisa o reforço do investimento em defesa pelo Japão, a ascensão da China a superpotência do século XXI e o impacto das ambições de Xi Jinping de deixar marca na História. O académico esteve em Portugal para uma conferência organizada pelo Clube de Lisboa.
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Durante anos houve um debate no Japão sobre aumentar ou não o orçamento da Defesa. Lembro-me de que era um dos objetivos do antigo primeiro-ministro Shinzo Abe. De repente, acabou o impasse. O primeiro-ministro, Fumio Kishida, conseguiu dizer, como facto consumado, que o orçamento iria ser aumentado e que atingiria os 2% do PIB em 2027. É, principalmente, uma reação à invasão da Ucrânia pela Rússia e à degradação da situação de segurança internacional?
É preciso compreender que não foi como se Kishida tivesse inventado alguma coisa do nada, muitas das orientações já existiam, mas foi algo provocado não apenas pela situação da Ucrânia, mas também pela China, que mudou, e também não podemos esquecer a Coreia do Norte, que dispara mísseis constantemente. Portanto, o ambiente de segurança do Japão deteriorou-se.

Mesmo que a decisão tenha sido tomada depois da invasão da Ucrânia pela Rússia e de o Japão ter algumas disputas territoriais com a Rússia, a principal ameaça é constituída pela China e pela Coreia do Norte?
Sim, sem dúvida. Penso que a política de Shinzo Abe era a de manter relações de amizade com a Rússia para que ela fizesse concessões territoriais, e isso mudou. A China é um caso difícil, porque o Japão depende muito do comércio com a China, por isso não é conveniente pressionar demasiado, mas tem de se lidar com o perigo claro que representa. Tudo já foi posto no seu lugar, foi isso que fez Kishida.

Quando visitei o Japão houve muitas pessoas, de ministros a jornalistas, que falaram sobre esta questão do orçamento da Defesa, e um dos problemas era convencer a opinião pública da necessidade de aumento, pois o país está envelhecido e precisa de gastar muito na segurança social, no sistema de saúde, etc. Há agora consenso na opinião pública sobre esta decisão de Kishida?
Não. Toda a gente fora do Japão está a analisar o documento da nova estratégia da segurança nacional japonesa, pois é um documento marcante que mudou verdadeiramente a postura do país em relação à defesa, no entanto existem dois problemas. O primeiro é saber se as pessoas estão realmente de acordo, se estarão verdadeiramente informadas e empenhadas nesta mudança, pois a identidade da segurança japonesa, na perspetiva do público em geral, não mudou. O outro problema com o documento da nova estratégia de defesa é que uma coisa é elaborá-la, outra é ter capacidade para a implementar efetivamente. Assim, penso que há uma diferença entre o que o Japão pretende fazer e o que conseguirá realmente fazer.

Não está a falar das restrições pacifistas impostas pela Constituição pós-Segunda Guerra Mundial...
Sim, estou a falar sobre a Constituição, porque é necessário revê-la se quisermos mudar a identidade da segurança. Rever e reinterpretar as normas de segurança do Japão é tão complexo para a maioria das pessoas que elas simplesmente nem pensam na segurança nacional no seu dia à dia. Elas não apreendem nem compreendem o significado disto, mas a revisão da segurança está em debate público aberto, toda a gente está envolvida e através deste processo a identidade de segurança do Japão está a mudar, e é esse o objetivo. Eu acredito que a Constituição é um documento muito importante e muito querido da população, é onde está descrito quem somos como nação. Portanto, sem mudar isso não estamos a mudar fundamentalmente a nossa atitude em relação à segurança.

Mas existe um debate, hoje em dia, sobre a mudança da Constituição?
É um dos poucos assuntos fraturantes no Japão. Eu diria mesmo que a revisão da Constituição é o único tema que divide opiniões no país. Portanto, qualquer político que tente fazer isso vai sofrer as consequências nas eleições seguintes. Terá metade dos eleitores a apoiá-lo, mas perderá a outra metade, e todos os políticos são cautelosos no que toca a assumir questões fraturantes. Há outra coisa sobre o documento, de que já falei, que é o conceito japonês de defesa exclusiva que está em debate. Por um lado, diz-se que se quer assumir uma nova postura em relação à defesa, no entanto nós temos a defesa exclusiva. Para mim, há aqui um paradoxo, porque o que significa a defesa exclusiva é que primeiro somos atacados e aí responderemos ao ataque, contudo o armamento pesado que está em questão é algo que temos de usar primeiro quando alguém está preparado para nos atacar, e não depois do ataque contra nós.

Isso significa que, mesmo com esta nova abordagem de defesa, o Japão ainda depende muito dos Estados Unidos para a sua proteção?
Sem dúvida. Há alguns peritos académicos que dizem que isto é o Japão a mostrar ao mundo que vai estar pronto para o fazer sozinho. Talvez isso seja verdade em espírito, mas, na realidade, o Japão não tem qualquer hipótese de se defender sozinho, está muito dependente dos EUA. Não é necessário ser-se um perito militar para perceber qual é a capacidade do Japão, basta olhar para o país, para o tamanho da sua força militar, que nunca foi testada em batalha, os oficiais nunca combateram. Vejamos, por exemplo, o exército japonês: tem 150 mil pessoas e uma força reservista de talvez 10 mil, o que é demasiado pequeno. Não há qualquer garantia de que uma guerra acabe em duas semanas... e, dessas 150 mil pessoas, qual a verdadeira força de combate?

Essa cooperação com os EUA, mas também com a Índia e a Austrália, no âmbito do Quad, é uma espécie de NATO do Indo-Pacífico?
Não, não é a NATO do Indo-Pacífico. Penso que o Quad está sobrestimado, é uma construção maleável que pode tomar a forma que se quiser, faz distribuição de vacinas, lida com o ambiente, mas não é um acordo de segurança, de modo algum.

Juntar estes países não é uma forma de contrariar a ascensão da China?
Os quatro têm visões diferentes. Penso que essa frustração da parte dos EUA e da Austrália foi o que levou ao AUKUS, que junta ainda o Reino Unido. A parceria AUKUS tem um foco, é baseada na segurança, é aquilo que o Quad não é. Pessoalmente, acho que o Japão se devia juntar à AUKUS, porque penso que o aspeto principal da AUKUS são os submarinos de propulsão nuclear. Isso seria uma mudança radical, não é que eles sejam mais silenciosos nem que possam submergir mais fundo - podem estar mais tempo submersos -, mas a grande mudança é que são, muito, muito rápidos.

A questão do armamento nuclear é uma opção para o Japão?
Acredito firmemente que o Japão, sendo o único país que sofreu diretamente as consequências das bombas atómicas, deve ter uma posição de princípio contra a posse de armas nucleares. Antes mesmo de se começar o diálogo sobre a posse de armas nucleares, o Japão devia ter abrigos nucleares por preocupação para com o seu povo, para que este estivesse preparado para se defender de um ataque nuclear. Porque a China diz que não usará primeiro essas armas, mas a palavra vale pouco...

A população partilha essa posição de que, moralmente, por causa de Hiroxima e Nagasaki, o Japão deve recusar as armas nucleares?
Há pessoas à direita que acreditam firmemente que o Japão deve ter armas nucleares. Temos de ser realistas, nós temos um tratado de não-proliferação (TNP) do qual o Japão é signatário. Portanto, a não ser que o país decida sair do tratado, não pode ter armas nucleares e, se o fizer, vai pagar caro, pois os EUA vão aplicar sanções ao nosso país. O Japão consegue obter urânio enriquecido dos EUA, por isso tem muitas vantagens para o uso civil e pacífico da energia nuclear por causa do TNP. Então, o que é que o Japão teria a ganhar se se afastasse desta estrutura? Na verdade, não muito. É aqui que as coisas se complicam, porque as pessoas usam a expressão "partilha nuclear" mas isso não é realmente partilha nuclear. Penso que o Japão deveria tentar um acordo em que o país poderia receber e manter armamento nuclear norte-americano em tempo de guerra, tal como acontece com cinco países da NATO - Alemanha, Países Baixos, Bélgica, Itália e Turquia. Isto, mais uma vez, em tempo de guerra, sem ter nada que ver com o TNP, e esse armamento nuclear seria norte-americano. Deveria chamar-se "partilha nuclear", mas as pessoas puseram de lado esta expressão. Não é como se a América dissesse "OK, vocês podem usar as nossas armas", seria só em tempo de guerra e sob o estrito controlo dos EUA. Isso é a verdadeira dissuasão. O Japão tem também 150 F-35 e cinco deles podem transportar armas nucleares, por isso acho mesmo que é uma dissuasão muito importante.

Pensa seriamente que existe a possibilidade de haver um conflito em Taiwan e, a acontecer esse conflito, poderá afetar o Japão?
Sim, sem dúvida, e se não acharmos que um conflito em Taiwan vai afetar o Japão então é porque não estamos neste planeta. Claro que sim, porque o flanco sudoeste do Japão é adjacente a Taiwan, se estivermos em Okinawa percebemos isso. O país precisa de ter uma entidade amistosa e democrática nesse ponto, porque se Taiwan se tornar uma entidade hostil isso irá impactar adversamente a realidade da segurança do Japão, o que não pode acontecer.

Pensa que uma tentativa chinesa de reunificação pela força poderá acontecer num futuro próximo?
Não tenho uma bola de cristal, por isso não sei se irá acontecer ou quando, mas, como académico, diria que ficaria muito, muito surpreendido se não acontecer. Existem muitas variáveis - Xi Jinping pode cair e partir o pescoço ou qualquer outra coisa acontecer -, caso contrário acho que é muito provável que Xi Jinping avance para Taiwan porque ele já o disse. Já afirmou que é essa a sua missão e o que o está a segurar é a situação na Ucrânia. É aqui que o que está a acontecer na Europa se liga ao que acontece na Ásia Oriental. Para mim tudo isto reporta aos anos 30, em que a situação na Europa se liga às ações japonesas, pois aquilo que fizemos baseou-se no que os alemães estavam a fazer. Assim, se Putin tiver sucesso a reverter o curso da guerra... Até aqui não se tem saído bem, mas continua a chamar-lhe uma operação militar especial.

Acha que uma invasão de Taiwan pela China pode ser motivada pela vontade de Xi Jinping de ser o reunificador último da China?
Sem dúvida, ele quer ultrapassar Mao naquilo que este não foi capaz de concretizar.

Mas, de um ponto de vista mais pragmático, a China é um país enorme que não precisa de uma pequena ilha. Será muito melhor para o poder chinês se anexar Taiwan amigavelmente com todo o seu poder e tecnologia, seria uma grande Hong Kong para aumentar o poder da China. Será que isto não está na mente de Xi Jinping?
Anexar Taiwan sem um ataque armado seria o melhor cenário e evitaria a guerra. Claro que os chineses não veem isso como um ato de guerra, para eles é apenas retomar a ilha, não é guerra mas sim uma questão interna. Não é uma questão internacional, é apenas do foro interno da China, mas será uma coisa muito difícil de fazer quando pelo menos 70% da população não quer. Até o KMT apenas quer relações amigáveis e já não se foca tanto na reunificação... Há também uma grande parte de taiwaneses para quem o dinheiro é muito importante, o ganho financeiro pessoal, e esses empresários veem a China como uma oportunidade, no entanto, agora estão a ficar mais cautelosos, devido ao aumento das tensões. Não se pode comparar verdadeiramente Hong Kong com Taiwan, são situações muito diferentes, mas tenho a certeza de que o sucesso de Hong Kong encorajou a China. Também já têm Macau, só falta Taiwan. Mas os taiwaneses e o atual governo não querem fazer parte da China e a América está a ajudá-los a armarem-se mais. A China, neste momento, está a pensar que eles se vão tornar mais fortes e que talvez devesse agir mais cedo. É uma questão muito complicada, porque não há interesse em provocar a China e é difícil saber qual será a melhor estratégia, mas penso que o que falta em muitos debates sobre a China é procurar saber o que é que está a motivar a China, quais são os objetivos chineses, quais são as fontes da conduta chinesa. Nós costumávamos fazer isso com a União Soviética e temos de o fazer mais com a China, porque a China tem a sua própria agenda.

Acha que o regime chinês está mais monolítico ou que há lá diferentes correntes, mas que sob a autoridade de Xi Jinping não se manifestam?
Costumava haver pontos de vista diferentes, interesses em competição dentro da China, mas, depois do recente congresso do partido, acredito que o governo dança todo a mesma música. Se olharmos para as pessoas que estão no governo, vemos que são todos comparsas. Portanto, pode ter havido alguma diversidade no passado, mas agora é muito monolítico. É o partido de Xi Jinping, não o Partido Comunista.

Pensa que o objetivo é fazer da China a próxima superpotência?
A China é uma nação que teve uma grande história. Foi, em tempos, a maior potência deste planeta, era por isso que se chamava o Reino do Meio, era o centro do mundo conhecido na Ásia. E desde as Guerras do Ópio que o país tem sido maltratado, foi invadido por uma nação bárbara... Portanto, está a regressar à glória chinesa - é agora a segunda maior economia e é uma grande superpotência hoje em dia. Qual é a definição de superpotência? Uma definição com a qual eu me identifico é a de que uma superpotência muda as regras globais da forma que lhe convém. A China é uma superpotência global e quer mudar as regras feitas pela América, porque essas regras convêm à América mas nem sempre convêm aos interesses chineses. A China está a pensar que quer estabelecer as suas próprias regras, quer jogar o jogo da maneira que acha que lhe traz vantagem e, além disso, quer que os Estados Unidos deixem de interferir na sua esfera do mundo. Quer que os americanos voltem para Guam e que deixem a China tomar conta da sua zona. Não é que ela queira entrar em guerra com os EUA, quer apenas estabelecer as suas próprias normas. A China tem orgulho na sua história, tal como o Japão. Os japoneses estão fortalecidos pela aliança entre os EUA e o Japão. Se eu fosse a China, pensaria em como destruir essa aliança, porque daria conta do Japão muito facilmente se os laços EUA-Japão se quebrassem, mas é essa ligação que torna o Japão muito complicado, porque envolve os Estados Unidos. Depois há as Filipinas, que estão a perturbar a China imensamente, e a situação na Coreia com as forças americanas lá. Porquê? Os chineses não têm forças no México, não têm forças no Canadá. Para eles tudo isto é muito pouco claro.

Para compreender a China é preciso tentar entender o que é que os seus dirigentes pretendem?
Acho que isso é muito evidente e não penso que o estejamos a saber fazer.

Mas no Japão as pessoas são capazes de fazer isso, de compreender a China, afinal tão próxima?
Tradicionalmente, o Japão tem excelentes académicos estudiosos da China, mas, para mim, grande parte deles são académicos que se focam na China e não nas relações internacionais ou nas questões de segurança. Aqueles que se focam apenas naquele país têm uma simpatia latente por ele. Eles não condenam o comportamento chinês, mas dizem que a China se comporta bem e menos bem, como se fosse uma criança engraçada, que a China é uma potência pragmática que não faz algumas coisas dentro do sistema internacional porque também tem o seu próprio sistema, e que, na verdade, é a América que está a provocar a China, que a América é terrível, e não gostam dela. Como eu sou um americanista nas relações internacionais, eles dizem-me que a América é muito perigosa porque se envolve em todo o lado, interfere constantemente por todo o globo. Respondo-lhes que eles não compreendem mesmo a América. A intervenção e a interferência dos Estados Unidos são irritantes, e eu sei isso, têm dois pesos e duas medidas e estão longe de ser perfeitos, mas o maior perigo não é esse, o maior perigo é a América perder interesse no mundo. É um país que tem a opção de não querer saber do mundo. Se os EUA disserem que não querem saber da Ucrânia, que não querem saber disto ou daquilo, todos perdemos uma grande força. Portanto, esse é o grande perigo. Assim, penso que é a sua falta de entendimento dos Estados Unidos, combinada com a empatia que sentem pela China, que distorce a sua interpretação. Assumem que a China é uma entidade realista, racional e pragmática.

Não concorda minimamente?
Eu penso que é um erro enorme, porque a China é agora uma ditadura. É muito difícil para nós, enquanto pessoas que vivemos em democracias, compreender a mentalidade de ditadores. Por isso acho que estamos a subestimar verdadeiramente as motivações de Xi Jinping. Ele procura a grandeza, é essa a sua motivação, e quando os ditadores falham nas suas ambições, não vão viver uma vida feliz num resort. Já vimos o que acontece com os ditadores, não é um fim feliz. Portanto, eles não podem perder, têm de arriscar tudo. Por isso é que penso que temos de ver a China através do olhar destes ditadores, perceber o que eles querem e como irão tentar alcançar os seus objetivos.

leonidio.ferreira@dn.pt

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