Somente um tigre (2)
Tinha 12, 13 anos. Um colega apareceu na escola com um casaco distinto e vistoso, de veludo debruado na gola. Disse à mãe que, se não lhe fizesse um igual, nunca mais voltaria a meter os pés nas aulas. Dali em diante, todos os seus casacos passaram a ter veludo na gola.
O episódio não passaria de uma historieta pueril se não tivesse sido passado com um dos maiores trompetistas de todos os tempos e, sem exagero, um dos maiores músicos do século XX. O porte que o celebrizou, nos palcos e fora deles, levou a que lhe chamassem Príncipe das Trevas, entre outros mimos (Picasso do Jazz, por exemplo). A biografia escrita pelo seu filho Gregory Davis intitula-se Dark Magus (mago negro) e tem um subtítulo expressivo: The Jekyll and Hyde Life of Miles Davis.
Elegeram-no um dos 75 homens mais bem-vestidos de todos os tempos e, noutra ocasião, o músico mais bem-vestido de sempre. Há, aliás, uma fotografia eloquente, que o mostra a exibir despudoradamente o guarda-fatos, com dezenas de sapatos espalhados pelo chão, em pose, e outros tantos adereços com que a fera se adornava. Ao centro da imagem, o ego imenso, transbordante.
Aquela historieta pueril não passaria disso mesmo se não tivesse ocorrido com Miles Dewey Davis III e se não tivesse sido contada por um nome que diz pouco, ou mesmo nada: Charlie Davidson. Em 1953, Davidson abriu uma loja selecta de roupa para homem, a Andover Shop, situada num lugar não menos selecto, Cambridge, Massachusetts. Miles Davis foi seu cliente durante muitos anos, sobretudo enquanto namoriscou o Ivy League, um estilo clean e informal, discreto e contido, avesso a demonstrações de luxo e dinheiro, que procura mimetizar a indumentária dos filhos-família das universidades de elite da América, Harvard, Yale, Princeton e por aí fora. Tudo muito WASP (white, anglo-saxon and protestant), muito Costa Leste, algo que em França toma o nome de BCBG (bon chic, bon genre) e que, mais recentemente, foi recriado por nomes como Ralph Lauren ou Tommy Hilfiger.
Sim, também Miles foi beto. Mas beto à sua maneira, evidentemente. Quando adoptou o look de estudante de Harvard ou de Yale (melhor dito, de capitão das suas equipas de râguebi...), Miles Davis já tinha feito uma crucial viagem à Europa, formativa a diversos níveis, tão formativa que dirá, mais tarde, que "mudou para sempre o modo como vejo as coisas". Em 1949, integrado num grupo de músicos de jazz, viajou até Paris, onde pôde aperceber-se de que, ao contrário do que acontecia no seu país natal, o escutavam com atenção e respeito, com uma devoção quase sacral, e que o seu público era composto por intelectuais e artistas de primeira linha, nomes cimeiros da cultura francesa e europeia, e não, como sucedia na América, por plateias fumarentas de noctívagos bêbados e marginais.
Em França, Miles viveria um arrebatado e tórrido romance com Juliette Gréco, que se perdeu de amores por ele. Apesar disso, e do genuíno amor que também nutria pela cantora e actriz francesa, decidiu regressar a Nova Iorque em nome de uma paixão maior, a música (e, já agora, para retornar à sua mulher e aos dois filhos pequenos do casal, Cheryl, nascida em 1944, e Gregory, nascido em 1946).
Não muito depois de voltar à América, Miles deixou-se devorar pelo demónio da depressão. Além da crónica falta de trabalho, que o colocou praticamente no limiar da pobreza (foi despejado de vários hotéis, por atrasos no pagamento, teve o automóvel penhorado), o ambiente à sua volta parecia-lhe opressivo e sem sentido, impregnado de preconceitos rácicos que não encontrara na Europa. Recordava com infinita saudade os dias parisienses com Juliette Gréco, sentia que a sua relação com Irene Cawthon chegara ao fim e que a sua família estava prestes a desintegrar-se. Ainda assim, e numa clássica tentativa de fuga em frente, ele e Irene terão outro filho, a que chamaram Miles, mas nem isso, como é evidente, conseguiu salvá-los do fracasso instalado. Na sua autobiografia, Miles reconhecerá que foi o responsável pelo desastre, que nunca chegaram a ter uma vida conjugal e familiar, seja por falta de dinheiro e de condições materiais seja por desinteresse dele. Ainda assim, manterá até ao fim da vida uma enorme gratidão para com Irene, que lhe deu e criou três dos seus quatro filhos.
Miles Davis, que já ingeria ocasionalmente cocaína antes da viagem a Paris, mergulhou então a fundo no consumo de heroína, e a um ponto tal que, para sustentar o vício, se tornou proxeneta de várias prostitutas de rua. Acabou por ser preso em Los Angeles, durante uma tournée, não muito depois de concretizar o sonho de tocar com Billie Holiday. Mesmo assim, conseguiu manter a notícia da sua prisão num círculo restrito, como convinha, mas uma indiscrição de Cab Calloway numa entrevista acabou por revelar o segredo. Miles jamais lhe perdoou.
Apesar desses tormentos, nos alvores dos anos 1950, Miles Davis deu um impulso decisivo à sua carreira, numa ascensão imparável, tão vertiginosa que, por vezes, gravava dois discos no mesmo dia, de manhã com Charlie Parker para a Verve Records, à tarde para a companhia rival, a Prestige, com a qual começou a trabalhar mais assiduamente após ter sido libertado e, sobretudo, após ter vencido o vício da heroína graças a uma intervenção decisiva do seu pai. Numa noite, o doutor Miles Davis Jr. apareceu de súbito em Nova Iorque, resgatou-o quase à força das garras da dependência e levou-o para St. Louis, a sua terra natal, onde o trancou dias ou semanas a fio, numa desintoxicação dolorosíssima, mas que, pese uma ou outra breve recaída, acabou por funcionar, ou quase.
De regresso à música e aos estúdios, Miles gravou de uma assentada uma série de discos para a Prestige, onde era visível a sua transição do bebop para o hard bop, um estilo mais agressivo e selvagem, com a percussão a desempenhar um papel central. O retorno à vida teve um momento alto numa actuação memorável, das mais memoráveis da sua carreira, no Festival de Jazz de Newport de 1955. Miles revelava-se também um líder nato e carismático, um príncipe capaz de pôr de pé o que ficou conhecido por "o primeiro grande quinteto", com John Coltrane (saxofone tenor), Red Garland (piano), Paul Chambers (contrabaixo) e Philly Joe Jones (bateria).
Um incidente de percurso, de forma alguma menor. Em 1955, foi submetido a uma intervenção cirúrgica para remoção de pólipos na laringe. O médico recomendou-lhe que se abstivesse de usar as cordas vocais durante os primeiros dias de convalescença, mas o tigre, como é óbvio, não lhe deu ouvidos e, no calor de uma discussão, ergueu a voz, usou-a forte e bem alto, o que teve uma consequência indesejada, mas sem dúvida fundamental na composição da sua persona. A voz de Miles Davis adquiriu para sempre uma tonalidade grave e rouca, tornou-se um gemido felino, o sussurro de uma tocha ardente. Passou a falar como um rufia espezinhado pela vida, o que correspondia, de resto, à sua aspiração: como disse Quincy Jones numa entrevista, Miles adorava fazer-se passar por um durão saído das ruas, à semelhança de muitos dos seus comparsas do jazz, quando, na realidade, era um menino de boas famílias, filho de um dentista de sucesso e de uma professora de Música que o mimava com casacos debruados a veludo. Um beto, em suma.
No final de uma década complexa, Miles produziu a sua obra-prima, Kind of Blue e, pouco depois, casou-se com uma escultural bailarina da Broadway, Frances Taylor, e teve um grave incidente com a polícia de Nova Iorque, que o espancou barbaramente numa noite à porta do Birdland, quando se despedia de uma amiga, caucasiana e branca. A partir de então, como o próprio confessou, tornou-se mais amargo, mais áspero, algo que ficou a dever-se à violência racista dos polícias de Manhattan, mas também, segundo dizem, ao desfecho desastroso da operação à garganta. Os que o conheceram de perto garantem que, antes dessa intervenção cirúrgica, Miles era jovial e alegre e, a partir daí, tornou-se mais sombrio e fugidio, como um tigre nos bosques da noite.
O estilo Ivy League, límpido e apolíneo, acompanhou-o ao longo dessa década de 1950. Nos tempos miseráveis da heroína, como é óbvio, pouco cuidou da aparência. Mas, logo que recuperou, as roupas de filho-família, adquiridas na Andover Shop, em Cambridge, Massachusetts, constituíram um sinal poderoso de reconciliação com a vida e a alegria nela inscrita. Os pólos de várias cores, as camisolas de râguebi, os pulôveres informais, eram também, por muito estranho que pareça, um desafio à ordem estabelecida, o grito possível de rebeldia naqueles anos de Guerra Fria. Miles Davis mostrava aos brancos que sabia vestir-se como eles, como os melhores deles, a fina flor, a elite das elites, os meninos ricos que frequentavam Harvard, Yale, Princeton ou por aí fora.
Longe iam os tempos dos fatos senhoriais, primorosamente vincados, que, por influência de Dexter Gordon, Miles começara a usar não muito depois de chegar a Nova Iorque. Em lugar de casacos assertoados com ombros proeminentes, o tigre privilegiava agora os casacos ingleses de tweed, com um ou outro toque pessoal mais dissonante, como um lenço ao pescoço ou um adereço especial. Na capa de Milestones, gravado em 1958, uma das suas primeiras incursões no jazz modal, vemo-lo na perfeição do estilo casual chic, de camisa azul aberta, arregaçada até aos cotovelos, calças escuras, o trompete na mão e um olhar compassivo e terno. Um homem sereno, regressado há pouco das profundezas dos infernos.
Depois, os anos 1960, dos excessos e das revoluções. Miles Davis, naturalmente, embrenhou-se a fundo nas violências da década. Na célebre entrevista que em 1962 concedeu à Playboy, a primeira grande entrevista publicada pela revista de Hugh Hefner, deu opiniões desassombradas sobre tudo, em particular sobre a questão racial que então dilacerava a América. Desde que foi espancado pela polícia nas ruas de Manhattan, tornara-se um adversário feroz do racismo e, com o tempo, converter-se-á num dos maiores porta-vozes da cultura afro-americana nos Estados Unidos.
Em termos musicais, começou a década com uma digressão pela Europa, o seu horizonte de liberdade, mas também, ou primordialmente, com o álbum Someday My Prince Will Come, de 1961, que surpreendeu, desde logo, por ser feito à base de temas populares e não de criações originais (como Kind of Blue), à cabeça dos quais a canção que deu título ao disco, extraída do filme Branca Neve e os Sete Anões, que a Disney fizera em 1937. Mais importante do que isso, a capa. Miles impôs à editora que, na portada do disco, figurasse a sua mulher, em grande plano, o que representava naturalmente uma ode de amor à beleza de Frances Taylor (e, porventura, um pedido de desculpas pelos maus-tratos a que a sujeitava...), mas também uma declaração política, ou perto disso. Mostrar uma mulher negra na capa de um disco de jazz, ademais como se fosse uma estrela de cinema ou uma dama elegante da alta sociedade, foi um gesto sem precedentes. E tanto mais curioso quanto, uma vez mais, foi através do look e do estilo, da aparência física e da roupa, que Miles Davis III enfrentou o sistema e subverteu os seus códigos e preconceitos.
Fê-lo, como sempre, com suprema elegância. Aos poucos, a aparência de colegial bem-comportado foi dando lugar a um estilo urbano, mais sofisticado e formal. Já não o dos fatos pesados e de ombros largos, mas algo de indefinível, mais próximo da descontração cuidada dos italianos, muito em voga numa época em que ainda soavam os ecos de La Dolce Vita e em que o herdeiro da Fiat, Gianni Agnelli, enchia as páginas das revistas mundanas como referencial de bom gosto e modelo de bem viver. Na recordação da ex-mulher, Frances Taylor, Miles passou a frequentar um alfaiate italiano, Mario, e a sua aparência de jovem colegial foi sendo substituída pela de cavalheiro urbano, seguro e autoconfiante, vencidas que tinham sido as tormentas da década passada.
Ou talvez não. Os anos 1960 não foram tempos calmos, nem para Miles nem para o mundo. Farta dos abusos e das agressões do marido, Frances foge de casa e, não muito depois, pede o divórcio, deixando o músico devastado. As dores e as doenças minam-lhe o ânimo: a anemia falciforme, uma doença que afecta um em cada 500 negros dos Estados Unidos, começou a minar-lhe as articulações dos joelhos; e uma infecção causada pelo uso de uma agulha infectada, nos tempos do vício da heroína, apoderara-se da sua perna esquerda. Isto para não falar, claro, dos problemas nas cordas vocais, que fizeram correr o rumor de que Miles padeceria de um cancro na boca ou na garganta. Muitas vezes, apresentou-se em palco com dores horríveis e era frequente fazer uma pausa nas suas actuações para ir tomar analgésicos nos bastidores, que muitas vezes misturava com álcool ou cocaína. Em Agosto de 1964, Miles partiu uma perna, o que o levou a ser operado. A primeira operação correu mal, o músico é obrigado a repouso absoluto durante longos e dolorosos meses, só regressando aos palcos em Novembro de 1965.
A febre da bossa nova levou-o a fazer um disco falhado com Gil Evans, Quiet Nights, que ambos consideravam estar inacabado, o que não impediu a Columbia de o lançar no mercado. Miles esteve anos sem falar com o produtor que tomara aquela decisão à sua revelia. Mais sucesso teve outra actuação memorável, um concerto de beneficência dado no Carnegie Hall, acompanhado da orquestra de Gil Evans, que, entre outras peças, tocou o célebre adágio do Concerto de Aranjuez, que Miles adaptara ao jazz no disco Sketches of Spain.
Divorciado de Frances Taylor, conheceu uma nova mulher, aliás, uma mulher bem mais nova do que ele, quase vinte anos de diferença. Mabry, mais tarde rebaptizada Betty, era uma modelo, cantora e música de gostos apurados.
Apesar de ela o negar, a sua influência foi determinante para que Miles mudasse radicalmente o visual, largando em definitivo os casacos e as gravatas em favor de uma indumentária mais livre e mais solta, com longas túnicas de motivos étnicos compradas numa loja de Greenwich Village. Os sapatos eram feitos em Londres, à medida, na Chelsea Cobblers. Os cabelos eram agora mais compridos e o penteado claramente afro-americano. O resto, previsível: vários colares ao pescoço, gigantescos óculos de sol.
É Mabry, de resto, quem o inicia em estilos musicais mais jovens, dando-lhe a conhecer os novos nomes da soul e do funk. Casaram-se em Novembro de 1968, tiveram um filho, mas o casamento durou pouco e terminou com violência, com Miles a acusá-la de ter tido um affair com Jimi Hendrix.
A morte de Hendrix e, acima de tudo, a morte de John Coltrane, vitimado por um cancro no fígado aos 40 anos, deixaram-no devastado. O pior foi, todavia, a morte do seu pai, em 1962, e, dois anos depois, a da sua mãe. Em ambas as ocasiões, Miles, que tinha enorme dificuldade em lidar com a morte, não esteve presente nos funerais. Arrepender-se-ia dessa decisão até ao final da vida.
(Continua)
Historiador. Escreve de acordo com a antiga ortografia