Covid e democracia

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Entrevistei há três meses, em Lisboa, o primeiro-ministro tunisino agora demitido pelo presidente, uma decisão que está a receber o aplauso de muita gente nas ruas de Tunes e outras cidades, mas que pode também ser vista como um golpe de Estado, na falta de um tribunal constitucional que valide a interpretação dos seus poderes no texto fundamental pelo chefe do Estado.

"Chegou o momento de a revolução democrática trazer bem-estar económico e social à Tunísia" foi o título que o DN escolheu para a conversa com Hichem Mechichi, um tecnocrata à frente de um governo apoiado por vários partidos, mas com predominância do Ennahda, o partido islamita moderado. O desabafo de Mechichi quase que coincide com os argumentos invocados pelo presidente Kaïs Saïed para o demitir, e em paralelo suspender o parlamento por um mês: a necessidade de tirar a Tunísia do caos, com a péssima gestão do combate à pandemia a juntar-se à frágil situação económica, nunca recuperada desde a Primavera Árabe de há dez anos.

Com o Ennahda de Rached Ghannouchi, opositor histórico ao regime de Ben Ali derrubado em 2011, como maior partido, mas um espectro político muito fragmentado, a Tunísia democrática vive uma permanente tensão. Sempre em causa o equilíbrio entre as exigências dos que acreditam no papel da religião na esfera pública e os defensores do laicismo, uma corrente muito forte no país desde a independência proclamada em 1956 por Habib Bourguiba.

Com apenas 7% dos 11 milhões de habitantes vacinados, a Tunísia chegou a ter na semana passada 300 mortos pela covid-19 em apenas 24 horas. Mesmo a ajuda internacional de emergência não está a chegar para dar resposta às carências do sistema de saúde. Portugal foi um dos países que se mostraram solidários e figuras da comunidade tunisina em Portugal também se mobilizaram para alertar para o drama sanitário.

Saïed, professor de Direito visto como conservador, sempre se manteve afastado dos partidos e foi como alternativa aos políticos convencionais que se fez eleger em 2019 com 72% dos votos na segunda volta das presidenciais. Diz agora estar, no respeito pela Constituição, a tentar salvar o país, uma democracia elogiada como o único caso de sucesso da Primavera Árabe. E já fez questão de alertar que as forças armadas agirão para defender a estabilidade do país.

Pela sua tradição de sociedade aberta e acolhedora (árabe com raízes berberes e fenícias), pelo valor que sempre deu à mulher mesmo no contexto do islão, e fundamentalmente pelas recentes provas dadas na crença na democracia, a Tunísia merece ser olhada com admiração. E receber todo o apoio possível da União Europeia para que a via democrática seja salvaguardada, mesmo perante a urgência de derrotar a pandemia e de relançar uma economia onde o turismo sempre teve um papel-chave.

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