O confinamento é "uma lua-de-mel para os agressores"?

Que há de melhor para um agressor que a vítima fechada com ele? Antecipava-se por isso agravamento na violência doméstica em 2020. Mortes foram 32 - menos três que em 2019 - e registaram-se menos queixas. Mas houve mais presos por este crime, mais medidas de coação e mais tele-assistência que em 2019.
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As denúncias de violência doméstica às forças de segurança desceram em 2020 face a 2019, ano em que se tinha verificado um grande aumento em relação ao ano anterior. Os números definitivos só serão conhecidos aquando da publicação do Relatório Anual de Segurança Interna, mas de acordo com os dados provisórios registados pelas forças de segurança, aos quais o DN teve acesso, as queixas de violência doméstica respeitantes a cônjuges e análogos apontam para uma diminuição de 5% face a 2019; se englobarmos todas as denúncias deste crime, que inclui também violência perpetrada sobre ascendentes e descendentes, a descida é de 6%.

Registaram-se no total cerca de 24 mil participações em 2020 no que respeita à violência contra cônjuges e análogos, enquanto que em 2019 tinham sido 24793 - o que significou uma subida de 10,6% em relação a 2018, quando se haviam registado 22423. Comparando trimestre a trimestre com 2019, ainda neste subgrupo do crime, a diminuição foi de 8% em janeiro/março, 6% em abril/junho, 3% em julho/setembro e 5% em outubro/dezembro. Englobando todas as queixas, o primeiro trimestre teve menos 10% face ao período homólogo do ano anterior, o segundo menos 7%, o terceiro menos 4% e o quarto menos 6%.

No entanto, olhando só para os números provisórios da Guarda Nacional Republicana, que esta força responsável pelo policiamento das zonas não urbanas forneceu ao DN - a Polícia de Segurança Pública disse não poder disponibilizar ainda os seus -, e que dão a ver uma diferença total de 288 participações a menos, correspondendo a uma diminuição de 2,13% (de 13503 para 13215), é possível perceber que esta se deve sobretudo aos meses de março e abril. Nestes meses, nos quais se deu o confinamento geral (iniciado a 19 de março, com a declaração de estado de emergência, e terminado a 3 de maio, com a passagem para estado de calamidade) registaram-se menos 428 denúncias face ao período homólogo de 2019, numa redução de 22%.

Também se verificou um decréscimo, face ao ano anterior, nos últimos três meses de 2020. Mas se não contarmos com os dois meses de maior confinamento (março e abril), nos quais por motivos óbvios as vítimas tinham menos possibilidades de apresentar queixa, 2020 acaba por apresentar, nos números da GNR, um pequeno aumento percentual face a 2019: 1,16%. Este aumento, mesmo contando com todos os meses do ano, incluindo a altura do confinamento, é de 10,92% face a 2018.

Já a contabilidade oficial de mortes em contexto de violência doméstica em 2020 é de 32 - 27 mulheres, quatro homens, uma criança (Valentina, de nove anos, alegadamente morta pelo pai, que está acusado do seu homicídio). A soma é inferior à de 2019, quando foram 35: 26 mulheres, oito homens e uma criança de dois anos - Lara, de dois anos, assassinada pelo pai, que matou também a sogra, a quem era suposto entregar a menina, logo no início de fevereiro. Em 2018 tinham sido 37 (24 mulheres, 13 homens).

Estes números são os constantes no site da Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género (CIG), que começou a publicar informação trimestral sobre violência doméstica em 2019. Não incluem mortes de ascendentes (mães, pais, avós), apesar de estes serem também, como já foi referido, abrangidas pelo tipo criminal de violência doméstica; só estão contabilizadas as mortes ocorridas no contexto de relações conjugais ou análogas e também, como se constata pela inclusão de Valentina e Lara, as de descendentes.

Mas é de relevar que apesar de todos os indicadores conhecidos quanto a 2020 - falta no site da CIG, onde são também reportadas trimestralmente as participações à PSP e GNR, a informação relativa ao período outubro/dezembro - apontarem para a já demonstrada descida no número de queixas, registou-se um aumento muito significativo dos reclusos por este crime (preventivos e condenados), mais 111 ao todo, das medidas de coação e afastamento e das pessoas abrangidas por tele-assistência (o chamado "botão de pânico", que permite comunicar diretamente com as autoridades caso haja uma situação de perigo).

Logo no primeiro trimestre de 2020, se se verifica uma diminuição de 9,1% nas participações à PSP e GNR em relação a 2019, há um aumento de 29,5% no total das medidas de coação de afastamento do agressor, de 38,8% nas medidas de coação de afastamento com vigilância eletrónica e de 33,4% nas pessoas abrangidas por tele-assistência no âmbito do crime de violência doméstica. Os mesmos indicadores registam um acréscimo de 29,5%, 39,2% e 30,1% no segundo trimestre e de 26%, 29,17% e 44% no terceiro trimestre. No período de janeiro a setembro de 2020, a comparação com homólogo de 2019 no que respeita a reclusos em prisão preventiva e efetiva por violência doméstica dá a ver sempre um aumento.

Um contraste que a secretária de Estado para a Cidadania e Igualdade, Rosa Monteiro, atribui a "uma maior resposta do Ministério Público e a uma maior sensibilidade em geral". E explicita: "Faço uma monitorização muito regular com as estruturas da rede, os gabinetes locais que fazem o atendimento. E o que me transmitiram foi uma maior autonomização das vítimas, que sentem que há mais medidas de coação e afastamento, o que de facto se traduz nos números que fomos recebendo relativos a essas medidas."

A essa maior sensibilidade do MP, que se materializou também naquilo que classifica como "um aumento brutal da tele-assistência, de 3031 casos para 4175 - começámos com um gasto de 127 mil euros em 2014 e agora é de um milhão", acrescenta-se, crê a governante, uma maior intervenção de terceiros. "Tem-se verificado uma maior solidariedade de familiares, amigos e terceiros em relação à vitima - seja na denúncia, nos pedidos de ajuda às estruturas da rede, seja no apoio, recebendo-a em sua casa, por exemplo. Creio que houve um aumento da consciencialização por efeito da mediatização e alerta social. Nunca se falou tanto de violência doméstica, e a mensagem de que existem apoios levou a uma maior mobilização e a uma responsabilização coletiva."

Mas adverte: "Como socióloga algo que me deixa os cabelos em pé é ler os dados que há como espelho da realidade. Nestas coisas temos de distinguir o que chega às forças de segurança e a realidade dos apoios e atendimentos."

E essa da realidade das cifras negras: o crime de violência doméstica é daqueles em que o desencontro entre aquilo que se passa e o que é denunciado é maior. Ainda assim, a secretária de Estado admite que o panorama do ano que passou é muito diferente do que temeu no início do confinamento: "Na primeira semana tinha pesadelos. Aquilo que temia era um aumento dos casos de homicídio, uma explosão de situações terríveis."

Era na verdade o medo de todos os que trabalham com vítimas de violência doméstica, e havia indicações internacionais de que poderia ser essa a tendência. Mas pelo menos no que respeita a mortes não foi. Há motivos para isso, reflete Rosa Monteiro: "O agressor está com os vizinhos todos em casa, portanto há mais vigilância, mais presença alheia. E também está com todo o controlo. E a a vítima adapta-se, porque é dotada de agência. Como me dizia Margarida Medina Martins [da Associação das Mulheres Contra a Violência], as vítimas têm racionalidade."

Daniel Cotrim, da Associação de Apoio à Vítima (APAV), corrobora: "A Covid e especialmente nos momentos em que obriga ao confinamento é uma lua de mel para o agressor. Porque a violência doméstica é domínio. A pessoa agressora viveu neste período nesta ideia mentirosa e de fantasia de que a pessoa está com ele porque quer. Acredito que a violência física terá diminuído, crescendo muito mais a psicológica e a sexual, que são violências mais silenciosas. A pressão psicológica, o medo, a humilhação, a chantagem, aumentam."

Num estudo da Escola Nacional de Saúde Pública (Universidade Nova de Lisboa) sobre, precisamente, "Violência Doméstica em tempos de Covid-19", cujos resultados preliminares são divulgados esta quarta-feira, 15% dos respondentes dizem ter sido vítimas deste crime, descrevendo-o a esmagadora maioria (13%) como consistindo em violência "psicológica"; 1% terá sido sexual e 0,9% física. Dos inquiridos que reportam ter sido alvo de violência, mais de um terço (34%) indicam tê-la sofrido pela primeira vez durante o período da pandemia.

Este estudo foi efetuado online e por auto-reporte, num total de 1062 respostas; a maioria das pessoas que disseram ser vítimas são do sexo feminino, e 72% não procurou ajuda ou fez qualquer denúncia. "Parece haver sinais de um aumento de casos não reportados oficialmente", diz a coordenadora do estudo, Sónia Dias, investigadora da Escola Nacional de Saúde Pública.

A APAV ainda não coligiu os seus números de 2020 mas Daniel Cotrim adianta que os pedidos de ajuda desceram 20% no primeiro mês do confinamento, depois de o ano ter arrancado com "mais denúncias e mais consciencialização". Depois, no desconfinamento, "surgiram vítimas que na sua maioria vinham de situações de violência continuada que piorou com o confinamento ou que não tinham tido facilidade em pedir ajuda por não poderem sair."

Ainda assim, acredita que o número de casos apresentados não corresponde à realidade: "Acho que a violência doméstica aumentou exponencialmente neste período." E acrescenta um elemento: "Em setembro começa-se a ter uma ideia clara de como a crise económica afeta sobretudo as mulheres. É como no tempo da troika. Elas pedem ajuda mas não podem sair da relação abusiva por causa da situação económica."

Mulheres muito desgastadas. Foi o que Elisabete Brasil, da FEM/Feministas em Movimento, viu chegar ao seu atendimento: "Estiveram 24 sobre 24 horas controladas, disponíveis, num duplo confinamento. O que elas dizem é que sentem uma maior instabilidade, não sabem o que vai acontecer. A situação pandémica acrescenta vulnerabilidade. Tinham de cuidar das crianças e havia um caos instalado em casa. Ficaram perdidas, há maior inação."

Apesar de o atendimento da FEM ter começado em agosto e portanto não haver dados comparativos, a ideia que Elisabete tem é de que "a maior parte das situações já vinha de antes e que se agravaram durante a pandemia. Elas não pediram ajuda porque não sabiam se os serviços continuavam." Há também casos, menos, em que a violência surgiu neste período: "Já havia mal-estar e surgiu nesta altura."

Apesar de os serviços de atendimento terem continuado a existir durante o confinamento em regime de teletrabalho, e de ter sido lançada pelo governo uma linha específica, confidencial, de pedido de socorro (que registou 1575 pedidos de ajuda de 19 de março a 31 de dezembro, entre telefonemas, SMS e mail), o que se sentiu naqueles dois primeiros meses, conta Alexandra Dourado, da UMAR/União de Mulheres Alternativa e Resposta, foi um inesperado silêncio.

"No nosso centro de atendimento, em Almada, sentimos um grande silêncio na primeira fase. Instalado o estado de emergência fomos para teletrabalho e estávamos na expectativa de que surgissem muitos pedidos de ajuda e não aconteceu. Estamos muito vocacionadas para intervenção de emergência e o que sentimos até junho foi que as mulheres que pediam ajuda para sair de casa eram sozinhas - com filhos não."

Ora, explica, "um dos motivos que leva as mulheres vítimas a adiar a saída de casa é o desejo de proteção dos filhos. A maioria, 90% das mulheres que temos aqui têm filhos." O facto de os agressores estarem em casa terá impedido muitas dessas mulheres de poderem agarrar nas crianças e fugir. Simplesmente não tinham oportunidade. Mas a partir de junho, conta Alexandra, "houve um boom. Foi mal elas puderam sair com os miúdos."

Outra alteração sentida por esta técnica que há 21 anos trabalha com mulheres vítimas de violência foi o aumento de situações relativas a saúde mental: "Isso começou logo a partir de março." Quanto a ter havido mais ou menos violência extrema em 2020, diz não ter instrumentos para responder.

"Hipoteticamente o pânico pode ter contribuído para a violência ser menor. É uma hipótese a explorar." Quem o diz é o sociólogo Manuel Lisboa, que há décadas trabalha o tema. "O pânico paralisa as pessoas. Daquilo que sabemos das neurociências, pode ter tido algum efeito no comportamento das pessoas, quer vítimas quer agressores."

Professor catedrático do departamento de Sociologia da Universidade Nova de Lisboa, este investigador está neste momento a desenvolver dois estudos multidisciplinares no terreno, um relativo a Lisboa e outro de âmbito nacional que pretende fazer "uma radiografia geral da violência contra as mulheres". Os primeiros dados só deverão estar disponíveis em maio e o trabalho foi "surpreendido" pela pandemia; "O que se sabe é muito pouco, pelo que o que possa dizer é mera hipótese que vamos tentar validar. Porque estamos numa fase do estudo em que ainda não conseguimos perceber se existe uma identidade entre as queixas registadas e a realidade."

Mas se essa identidade existir, Manuel Lisboa conta para a explicar também com uma hipótese já aventada por vários outros entrevistados. "Foi o mundo perfeito para os agressores, que tinham o controlo total da situação dentro das quatro paredes." Frisa porém que, para além de ser contra-intuitiva a explicação de que ter a vítima completamente à disposição, sem ponto de fuga, diminui a violência, os dados que chegavam no início da pandemia "eram um pouco assimétricos em termos mundiais. Havia países da América Latina onde os valores eram assustadores e havia outros da Europa em que não era bem assim, nomeadamente Portugal."

Há ainda a possibilidade, adianta, de as vítimas terem "entrado em hibernação, ficado quietas. Porque os estudos anteriores mostram que a maior violência surge com a rutura, quando o agressor perceciona que vai passar a não ter o controlo. Se está dentro da casa, se é o rei do castelo, esse controlo é total. A chance de fuga é baixíssima."

Certo é que a variação entre 2019 e 2020, quer nas mortes quer nas queixas à polícia, é muito pequena. E é-o em relação a um ano em que as denúncias aumentaram muito. Porque terão aumentado tanto em 2019? Mais uma hipótese: "Pode ter a ver com o arranque brutal, logo no início do ano, com vários homicídios, incluindo o da criança de dois anos, e com a mediatização feita disso. A mediatização é muito importante nos sentimentos de insegurança. O caso da criança pode ter condicionado a ação das pessoas, e talvez das próprias vítimas: podem ter pensado: "Ando aqui há não sei quantos anos a suportar isto e pode-me acontecer, ou aos meus filhos.""

Talvez tenha tido de morrer uma menina para que o país tenha finalmente percebido que isso da violência doméstica não é um "assunto lá deles", diz respeito a todos.

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