O 'nyet' de Guterres

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Sabia-se que para secretário-geral da ONU os russos queriam que se impusesse um candidato da Europa de Leste, e uma hipótese aceitável era a búlgara Irina Bukova, mas que a questão do género não era decisiva para eles. Numa fase mais adiantada do processo de escolha, ao longo de 2016, embora continuasse sem entusiasmo por António Guterres, o ministro Serguei Lavrov dava a conhecer à diplomacia portuguesa aquela que seria a posição decisiva da Rússia: "Viveremos bem com ele."

Estas conversas de bastidores, contadas por Filipe Domingues e Pedro Latoeiro na biografia que escreveram do atual secretário-geral das Nações Unidas, permitem entender melhor os ataques recentes ao português, inclusive por Lavrov, que levaram até a que viesse em defesa do antigo primeiro-ministro não só o nosso ministro dos Negócios Estrangeiros, como Josep Borrell, o espanhol que lidera a diplomacia da União Europeia. "Quero exprimir a solidariedade de Portugal para com as Nações Unidas e o secretário-geral das Nações Unidas, que tem sido nas últimas horas vítima de um ataque pessoal absolutamente infundado e obsceno da parte das campanhas de desinformação orquestradas a partir da Rússia", disse Augusto Santos Silva.

Lavrov, o experiente chefe da diplomacia russa, foi contundente, depois de ouvir Guterres criticar o presidente Vladimir Putin pela invasão da Ucrânia na quinta-feira de madrugada: "Para nosso grande pesar, o secretário-geral da ONU foi alvo de pressões do Ocidente e fez várias declarações no outro dia sobre o que está a acontecer no leste da Ucrânia que não correspondem ao seu estatuto e aos seus poderes sob a Carta da ONU."

Ora, se a acusação de Lavrov a Guterres de violação da neutralidade é grave, a verdade também é que perante a iminente invasão de um Estado-membro da ONU por outro, ainda por cima um membro permanente do Conselho de Segurança, o secretário-geral foi excecionalmente direto ao dirigir-se ao presidente russo a pedir que "dê uma oportunidade à paz". E quando as intenções russas ainda não eram totalmente claras, já Guterres dizia que "a decisão da Federação Russa de reconhecer a pretensa "independência" de certas áreas de Donetsk e de Lugansk é uma violação da integridade territorial e da soberania da Ucrânia".

Espécie de não a Putin, um inesperado nyet, a coragem de Guterres mereceu nota na imprensa internacional. E em análise aqui no DN, Victor Ângelo, antigo secretário-geral adjunto da ONU, falou de um momento memorável e de declaração "altamente significativa e corajosa". E, com o saber de quem esteve uma vida toda ao serviço da organização internacional, lembrou mesmo que "nunca, na história da ONU, um secretário-geral havia ousado ser tão claro na condenação de uma ilegalidade em larga escala praticada por um dos membros permanentes do Conselho de Segurança. U Thant, que esteve à frente da organização entre 1961 e 1971, referiu-se várias vezes aos Estados Unidos e à sua guerra injusta no Vietname, mas não foi tão longe".

Depois da guerra, haverá diplomacia e todos terão de dialogar, incluindo a Rússia, potência incontornável. E nesse momento terá de haver ONU por trás e, claro, Guterres, até porque o segundo mandato só termina em finais de 2026. Dirão alguns que a ação futura do secretário-geral ficará prejudicada pelo tal nyet, mas quem disse que às vezes não é preciso mesmo levantar a voz?

Diretor adjunto do Diário de Notícias

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