O primeiro ano dos artistas de circo fora do chapitô
Cláudio e Rui nasceram, cresceram, tiveram os filhos e, até netos, no circo. Representam décadas de tradição nas artes circenses. Cláudio vai na oitava geração da família Torralvo e Rui, na quinta geração dos Mariani. Companhias com mais de 20 anos a percorrer o país e a assentar arraiais nas principais cidades no Natal e no Ano Novo, com um cartaz mais forte porque é quando se ganha dinheiro para o ano inteiro. Só não trabalhavam na noite de consoada, quando toda a companhia se juntava no meio da pista do chapitô para partilhar a mesa e as histórias. Nesta quinta-feira não se cumpriu a tradição, a pandemia obrigou-os a parar. A maioria dos artistas de circo não trabalhou nesta quadra pela primeira vez na vida.
"É muito triste. A salvação do circo é o Natal e o Ano Novo, chegamos a fazer cinco espetáculos por dia. Contratava sempre artistas para ter um espetáculo forte, uma coisa bonita, melhor, para o Natal. Na consoada, colocávamos as mesas na pista, juntavam-se todas as famílias, 60 a 70 pessoas, e cada um trazia algo para comer. Alguém se vestia de Pai Natal, vinha num trenó e distribuía as prendas pelas crianças. Neste ano, passámos só com a minha família próxima, um de nós vestiu-se de Pai Natal, mas não é a mesma coisa. É uma tristeza", emociona-se Cláudio Torralvo, 47 anos, oito filhos entre os 27 e os 4 anos, todos artistas de circo.
É o proprietário do Circo Cláudio que, nesta quadra, juntava a sua companhia ao Circo Soledad Cardinali, no Parque da Cidade no Porto. Ele está parado desde que foi decretado o estado de emergência, em março. Levantaram a tenda a 3 de janeiro, no Porto, para andar pelo país, principalmente em muitas cidades de Trás-os-Montes, em sítios onde as pessoas não imaginam que seja possível fazer as coisas que lhes apresentam. Conta que, quando tinha tubarões, uma senhora lhes pediu para não os largarem no campo que lhe comiam o milho. Malabaristas, palhaços, trapezistas, mágicos, animais e, nos últimos anos, as novidades: o laser-man (duplo mortal em automóvel) e o carro transformer.
A pandemia obrigou-os a estacionar toda a logística necessária à realização de um espetáculo na residência que têm em Vagos, no distrito de Aveiro. Não lhe chama casa, porque a sua é a rulote. "Estamos preparados para partir. Se amanhã nos dissessem que podíamos atuar, arrancávamos e fazíamos espetáculo já amanhã", diz. Acrescenta que é mais prático viver na caravana, mas reconhece que a maior razão é gostar tanto daquela habitação móvel.
Pediu licenças para atuar no Porto, Viseu e Aveiro, que não lhe foram concedidas. Teria, ainda, de ter autorização do delegado de saúde, depois, reduzir drasticamente a lotação das bancadas devido à covid-19, para menos de um terço do habitual, o que é praticamente impossível dada a logística dos circos. O Circo Cláudio e o Circo Soledad Cardinali montavam um espaço com três mil lugares, agora teriam de reduzir pelo menos para mil lugares. Além de que o Presidente da República decretou novamente o estado de emergência e há proibição de circulação. Não poderiam atuar aos sábados, domingos e feriados à tarde e à noite, os dias mais fortes.
O Circo Cláudio tem 12 camiões, dez viaturas ligeiras e as caravanas dos artistas estacionados. "Tudo parado, tudo a pagar o IUC (imposto de circulação automóvel), sem trabalhar e com as mesmas despesas diárias. Temos os animais, têm de se alimentar. Estamos a comer as nossas poupanças que fomos guardando ao longo dos anos para a nossa velhice", lamenta-se Cláudio.
O agregado familiar é alargado: 15 pessoas, entre filhos e genros, todos com várias funções no circo. O filho mais novo, o Santiago, de 4 anos, surge na pista de dentro do carro transformer . À pergunta o que fazes, responde: "magia". Segue na escadinha a Kyara, de 8, entra a pedalar num monociclo, habilidades que vai treinando.
Durante este confinamento, no caso das famílias circenses em sentido mais amplo, Kyara protagonizou uma situação que demonstra como o circo lhes corre nas veias. Grande parte da família Torralvo é do Porto e a criança ficou em casa da avó para ir à escola, não aguentou muito tempo fora do seu habitat natural. "Foi a professora que nos disse para a ir buscar, que ela não estava bem. Noventa por cento da família Torralvo é do Porto e foi àquela escola, a professora ensinou a minha mulher, conhece-nos bem e percebeu o que se passava", conta Cláudio, para sublinhar: "Costumo dizer que, se voltasse a nascer, queria nascer no circo."
Gasta 400 a 500 euros semanais em alimentação para os animais: quatro póneis, três tigres-de-bengala, dois camelos, dois burros, uma lama e um cavalo. "O que mais me revolta é que o PAN não está preocupado se os animais têm comida ou não. Mas nós não lhes vamos faltar, vivemos com eles, fazem parte da família ". O partido das pessoas e dos animais esteve na linha da frente para a proibição da utilização de animais selvagens no circo, com efeitos a partir de 2024.
Cláudio Torralvo é domador dos tigres. "O único número de jaula em Portugal é meu. Fui eu criei que os criei, estão 24 horas comigo, sei o que querem só pelo olhar."
Tem poupanças até março para aguentar a família, quando fizer um ano de paragem completo. "Se não arrancar nessa altura, estou desgraçado." Cláudio Torralvo defende uma ação de protesto mais musculada por parte dos artistas de circo, uma manifestação até à Assembleia da República.
Rui Mariani tem a sua caravana mesmo ao lado da casa que comprou há 11 anos na Moita, no distrito de Setúbal. É nela que continua a viver o dono do Circo Mundial, que no ano passado festejou 20 anos de atividade, em Vila Nova de Gaia, a "terra-mãe", poder-se-á dizer. Ele justifica: "Gosto de estar na caravana, não consigo viver noutro sítio."
Tem 65 anos, trabalhou no Circo Chen até ter a sua própria companhia, há 26 anos, depois criou o Circo Mundial. É um artista polivalente, como acontece geralmente, não só nos números apresentados como nas funções que têm num dia de espetáculo. Começou como trapezista e destacou-se como domador de tigres, "o primeiro em Portugal", diz. Chegou a ter 18 tigres, também cavalos, crocodilos, jiboias e hipopótamos. Deixou de os ter depois da aprovação da lei que os proíbe de usarem animais selvagens.
Montam dois circos por esta altura, um em Vila Nova de Gaia, com 1500 lugares, e, desde há dez anos, no Funchal (Madeira), 700 lugares. Aqui fez o último espetáculo de 2020 a 6 de janeiro. Um dia antes tinha desmontado o de Gaia "Nunca tive a perceção de que não ia trabalhar neste ano, pensava que íamos parar um mês e, depois, resolvia-se o problema". Foi muito pior do que imaginava.
Nesta quadra, estariam cem pessoas a trabalhar para o Circo Mundial, que reduz para 35 a 40 quando partem em tournée e atuam numa tenda de 500 lugares. Artistas contratados à época, prestadores de serviços que foram, entretanto, dispensados. E a família Mariani fez-se à estrada, mas não para encantar crianças e surpreender adultos.
O filho Ruben, o "homem-bala", tem uma máquina e faz limpeza de terrenos; Mário, que também domou tigres como o pai e é mágico, monta casas prefabricadas; a filha Carol, que é trapezista e entra no número aéreo, distribui refeições. Os netos continuam os estudos, a Celina, de 16 anos, faz parte do número aéreo, e o Diego, de 9, atua como palhaço.
Rui Mariani repete que o circo merecia mais respeito, que vivem da bilheteira e é arte completamente autossuficiente. Inclui não só toda a logística para montar um espetáculo, como diversões, máquinas de pipocas e de algodão, gerador de eletricidade. Aliás, tanto o Mundial como o Cláudio são chamados para juntarem as suas estruturas a outros projetos circenses no estrangeiro, nomeadamente em Espanha. Só precisam de água e de um terreno. "E, muitas vezes, temos de andar a mendigar às câmaras para podermos exercer a nossa profissão. Há autarquias que pedem muito dinheiro por um espaço para podermos montar as tendas."
A dependência da vontade das câmaras é uma crítica generalizada entre estes artistas. Outra é os seus camiões, que estão muito tempo estacionados, pagarem imposto igual aos que circulam diariamente. "Pago 700 a 800 IUC no início de cada ano com o dinheiro que ganhava nesta altura. Fomos pedir ao Ministério das Finanças para suspender o imposto e não aceitaram. O Natal e o Ano Novo eram a golfada de ar para o ano inteiro, contratava artistas no estrangeiro. Estamos parados e, além dos IUC, temos os seguros, as inspeções, vejo as minhas economias a sair todos os dias. Não sei como irei fazer."
Mas Rui Mariani é um homem de esperança. Acredita que as coisas vão mudar em 2021. Explica que têm a promessa da ministra da Cultura de que o circo tradicional será integrado na sua pasta e ter os mesmos apoios do circo contemporâneo.
A Associação Portuguesa de Empresários e Artistas de Circo (APEAC) foi criada em março e registada em maio. Carlos Carvalho, do Circolândia, é o seu presidente. Explica as razões desta luta: "Sentimos que havia muitas injustiças, nomeadamente o circo contemporâneo ter apoio e o circo tradicional não. Não somos elegíveis nos apoios para a cultura no âmbito da covid-19. Por outro lado, os circos são reféns das câmaras que são as que autorizam a montagem do espetáculo. E algumas pedem preços exorbitantes pelos espaços, por exemplo, a Câmara Municipal de Ponte Lima pediu 12 mil euros por três dias."
Contabiliza cerca de 30 circos em Portugal, agregando uns 200 artistas. Estão parados há dez meses, continuando a pagar todos os impostos inerentes à atividade.
Uma única companhia no país está a trabalhar com o calendário habitual para a época: o Ruben Circus, em Braga. Juntou-se-lhes, no Dia de Natal, o Super Circo, em Gondomar (até 10 de janeiro), e o Flic Flac Circus, em Fafe (até dia 3). Atuam com cartazes mais reduzidos para fazer face às regras sanitárias, nomeadamente a redução de lugares. O Coliseu do Porto também apresenta o seu espetáculo, mas tem outros apoios.
A associação tem meio ano de atividade e muitas reuniões, mas ainda sem respostas efetivas das autoridades responsáveis. Carlos Carvalho lamenta a falta de abertura às reivindicações:.
O PCP viu aprovado na AR em julho um projeto de resolução para que o governo tomasse medidas imediatas para garantir a sobrevivência do circo e dos seus artistas enquanto durassem as restrições impostas pela pandemia. Uma das propostas era a harmonização e a simplificação dos licenciamentos. Ainda não teve consequências. "Não há vontade política para apoiar o circo", lamenta Carlos Carvalho.
Tem 45 anos de profissão, foi domador, trapezista, fez a roda da morte, dirigiu o espetáculo. Faz parte da terceira geração de artistas circenses na família que já vai na quinta, com os netos. "O meu avô veio para o circo e temos mantido a tradição. O circo que está a faltar nesta quadra é o nosso, a tradição, não é o circo contemporâneo. Não temos nada contra, mas não podemos aceitar um tratamento diferente. Há discriminação e estamos a denunciar esse tipo de situações. Têm de ser integradas as várias disciplinas do circo. Existem escolas em Portugal, cursos de três anos e que, depois, exigem um estágio. Onde é que vão estagiar se os circos acabarem? Mais de 90 % dos artistas não têm condições para trabalhar neste momento. Alertámos o governo em maio de que não havia condições para trabalharmos até setembro. Isto pensando que a pandemia iria passar depois do verão. Estamos em dezembro e, para muitos, é um ano sem trabalhar."
Mário Ruben Freitas é um homem feliz. Trabalharam até março e, com a família, conseguiu montar o Ruben Circus num terreno cedido a custo zero por um privado e com a autorização da Câmara Municipal de Braga e do delegado de saúde. Tem, ainda, o apoio da Junta de Freguesia de Ferreiros, onde estão instalados.
"A câmara não tem terrenos e disse que autorizava se conseguíssemos um terreno e assim foi. Fazemos Braga há 20 anos. Somos um circo familiar e só contratamos pela altura do Natal, neste ano, é só com a prata da casa desde 16 de dezembro. Ficamos até 3 de janeiro."
E, como anunciam na página do Facebook (ferramenta que todos usam), não prometem "o melhor espetáculo do mundo", mas prometem "que não o esquecerão". No final, o público agradece: "Obrigado por terem vindo à nossa cidade."
Uma família de 16 pessoas que se desdobra em 16 números. O filho Ruben é o cabeça-de-cartaz e, entre outras destrezas, convive com piranhas num aquário gigante com 23 litros de água que está sempre montado. O Kevin tem 10 anos e é malabarista, já "é melhor do que o pai", assegura o progenitor. A mulher, Michaela, tem um número de tecidos aéreos. O tio é o palhaço e vai surgindo ao longo do espetáculo. Sandy, a prima, é contorcionista, e assim se vão multiplicando nas várias artes que o espetáculo exige.
Mário Ruben pertence à família Torralvo (é primo do Cláudio), nasceu no circo, onde já fez quase tudo e agora é o apresentador. "O meu avô tinha circo, a minha mãe tinha circo e, há sete anos, comprei a minha companhia".
Tem 39 anos e, na curta vida de empresário, este é o ano mais difícil. Tiveram de se adaptar às restrições da pandemia, desde logo, reduzir a tenda de 800 lugares - e que poderia ir aos mil - para 180. Também alteraram os horários. "Tínhamos espetáculos às 16h00 e às 18h00, agora, durante a semana fazemos às 16h00 e, aos fins de semana e feriados, às 10h30. É uma novidade e está a funcionar bastante bem", diz. Neste sábado, atuam às 10h30 e às 16h00, mas no dia 1 de janeiro apenas às 10h30 devido à proibição de circulação em Braga a partir das 13h00.
Estão a trabalhar e ficam felizes quando conseguem superar as cem entradas. Os grandes clientes em outros anos eram as empresas que compravam espetáculos para os funcionários. Neste ano, apenas a APTIV manteve o compromisso anual. Compraram toda uma sessão com transmissão digital em direto e o sorteio de cabazes, como fazem todos os anos, também gravaram para futuras repetições. E tinha um contrato com um supermercado, que oferecia entradas para o circo. Apesar de todos os problemas, mantiveram o preço dos bilhetes, 15 euros por adulto com a entrada de uma criança até aos 12 anos grátis. Não se arrependeu de voltar à arena apesar das restrições.
"Não estou nada arrependido. É um circo familiar, se dá muito, ganhamos todos; se dá pouco, perdemos todos. O importante é trabalhar . Não vai dar para o prejuízo que tivemos, mas vai dar alguma coisa." Remata sobre esta consoada. "As pessoas do circo gostam de comer as batatas no circo, a ceia tem de ser na tenda. É tradição".