Desde o século XIX que um presidente não executava tanta gente - e quer matar mais
São 22 os estados americanos que não têm pena capital e entre os 28 que a preveem 12 não a aplicam há 10 anos. Este ano, só houve execuções em cinco estados - num total de oito condenados mortos; a tendência para a diminuição das execuções é notória nos EUA desde os anos 1990. Mas a administração Trump decidiu, no seu último ano, retomar as execuções federais, que não tinham lugar desde 2003. E fê-lo com tanto entusiasmo que na semana de julho em que ordenou a sua primeira execução federal marcou logo mais duas; logo aí, igualou o número de execuções federais das últimas três décadas. Em agosto foram mais duas, em setembro outras duas; já após as eleições, a 19 de novembro, mais uma, e em dezembro duas.
Soma dez, ou seja, mais de 21% de todas as execuções federais desde os anos 1920 - que somam um total de 47. E fazendo de 2020 o primeiro ano da história do país em que houve mais execuções federais que de todos os estados juntos.
Mas Trump não tenciona ficar por aqui: há mais três execuções federais marcadas para 2021, incluindo a primeira de uma mulher desde 1953. Trata-se de Lisa Montgomery, de 52 anos, condenada em 2004 pelo homicídio de uma jovem grávida de oito meses a quem de seguida retirou o bebé da barriga com uma faca (a criança sobreviveu). Montgomery é a única mulher no corredor da morte federal (há 50 mulheres condenadas à morte em 15 estados), no qual estão 61 homens. A sua execução estava marcada para 8 de dezembro e foi adiada para 12 de janeiro, a oito dias da tomada de posse de Biden.
Desde 1889 que um presidente cessante não mandava matar alguém durante o período de transição - naquilo que a que nos EUA se dá o nome de presidente "lame duck", ou seja, "pato coxo". O último presidente a ordenar execuções enquanto pato coxo foi Grover Cleveland, em 1889, sendo que foi também Cleveland, no seu segundo mandato (é o único na história dos EUA que teve dois mandatos não consecutivos, tendo sido o 22º e o 24º presidente), a estabelecer o recorde de execuções federais - 16. Se matar os 13 que tem planeados, Trump ficará em segundo nesta categoria.
As execuções federais resultam, como o nome indica, de decisões dos tribunais federais, os quais podem condenar à morte por homicídio ou tentativa de homicídio de testemunhas, jurados, ou membros dos tribunais, mas também traição, espionagem e até tráfico de droga, entre outros crimes. Ao contrário do que se passa nos tribunais dos estados, nos quais cada procurador tem autonomia para pedir a pena de morte, no sistema federal só o Procurador-Geral dos EUA (o correspondente ao Procurador-Geral da República português mas também ao ministro da Justiça) pode pedir a pena capital. Os condenados só podem recorrer para os tribunais federais.
Mas, apesar da fúria matadora da administração Trump, e de haver ainda cerca de 2600 pessoas no corredor da morte nos EUA, desde 1991 que não eram executadas tão poucas pessoas num ano. Depois de um pico de 98 execuções em 1999, o número tem vindo a baixar visivelmente. E o estado da Califórnia, que tem o maior número de condenados à pena capital - 720 - não a concretiza desde 2006.
"O país evoluiu desde os anos 1990, quando as execuções e sentenças de morte alcançaram o seu máximo," diz, citado pelo New York Times, Robert Dunham, o diretor executivo do Centro de Informação sobre a Pena de Morte, cujo relatório de dezembro, que apresenta vários números sobre esta realidade, chama a atenção para os recordes batidos por Trump em 2020 e o contraste com o que parece ser a direção do país.
Segundo Dunham, as razões para a crescente resistência à pena de morte são numerosas: oposição moral; a possibilidade de executar inocentes; o custo elevado da litigância nos casos de pena capital; o facto de não ser dissuasora; a crença de que "tudo o que está mal no sistema criminal piora no caso das penas capitais. As pessoas não confiam na justiça do sistema."
E com motivos para isso: este ano foram mais seis os condenados à morte completamente ilibados - sendo agora 172 desde 1973. Os seis tinham passado entre 14 e 37 anos presos, e descobriu-se que em todos os casos tinha havido má conduta da acusação.
Há ainda o cálculo custo-benefício, como Dunham certifica ao Washington Post: durante a recessão pós-2008, legisladores conservadores submeteram a pena de morte a uma análise de custo-benefício semelhante à utilizada para programas sociais e concluíram que é ineficiente.
2020 foi também o ano em que o Colorado se juntou aos 21 estados sem pena de morte. Aconteceu em março, com o governador Jared Polis, democrata, a declarar que "a pena de morte nunca foi, e nunca seria, administrada de forma equitativa no Colorado", chamando a atenção para números que considera evidenciarem a desigualdade racial no sistema judicial: sete das 17 pessoas executadas neste ano eram ou negras, ou latinas, ou índias; 13 das vítimas eram brancas.
De acordo com o citado relatório do Centro de Informação sobre a Pena de Morte, nas eleições de novembro foram escolhidos procuradores em Los Angeles, Orlando, Nova Orleães, Tucson, Portland e Austin - cidades de estados onde há pena de morte - que se comprometeram a não pedir a sentença capital.
E há, claro, o novo presidente. Se Biden foi nos anos 1990 autor de legislação que reforçou a possibilidade de pena de morte federal e restringiu o acesso dos condenados no corredor da morte dos estados aos tribunais federais e à hipótese de alegarem inconstitucionalidade das penas, parece ter agora dado uma volta de 180 graus.
Na sua campanha, o presidente eleito defendeu o fim da pena de morte federal, anunciando que quer passar uma lei para acabar com ela, e "incentivar os estados a seguir o exemplo do governo federal... Porque não podemos assegurar que a pena de morte esteja certa sempre."
Mas Dunham frisa que Biden tem responsabilidade na matança de Trump: a legislação que o agora presidente eleito fez passar nos anos 1990 expandiu os crimes que podiam levar à pena de morte e ajudou a que estas últimas execuções tenham sido possíveis. "A certa altura, Biden acreditou que a pena capital era dissuasora e que expandir a sua aplicação ajudaria a lutar contra o crime", diz Dunham. "Mas 30 anos depois está provado que isso não tem ponta por onde se pegue. Joe Biden esteve sempre no mainstream do Partido Democrata e as suas ideias nos anos 1990 eram as ideias mainstream do partido. A dinâmica era então completamente diferente de agora."
Mas pode Biden acabar com a pena de morte federal? Precisa do Congresso para isso, e com uma casa tão dividida não é óbvio que o consiga fazer. A solução, considera Dunham, pode passar por usar o seu poder de clemência, comutando as penas de morte. "Se o seu objetivo é acabar com a pena de morte e não o pode fazer porque os legisladores não querem sequer ouvir falar no assunto, então não tem escolha se realmente está empenhado naquilo que afirma: tem de exercer o seu poder de clemência."