Obrigado, Gulbenkian, por tocares Tchaikovsky em vez de tambores de guerra

Publicado a
Atualizado a

Nunca deixo de pensar sobre a sorte grande que saiu a Portugal com a Gulbenkian, fundação que está entre as maiores da Europa e que reparte as suas atividades entre cultura, ciência e ação social. E ontem foi um daqueles dias em que a fundação que deve o seu nome (e fortuna) ao arménio Calouste Gulbenkian mostrou como é única: às 19 horas, no Grande Auditório da sede, em Lisboa, a Orquestra Gulbenkian, sob a batuta de Andris Poga, interpretou obras de Piotr Ilitch Tchaikovsky e de Dmitri Chostakovitch, dois nomes maiores da música russa. Já o tinha feito na véspera, mas o concerto de sexta-feira pôde ser também visto pelo Facebook da fundação, uma oferta de alta cultura a quem vive fora da capital ou tem mais dificuldade em pagar um bilhete de sala.

Apesar das muitas biografias, entre elas a de Jonathan Colin intitulada O homem mais rico do mundo, permanece o mistério sobre a escolha de Portugal pelo magnata para passar os últimos anos da sua vida. Entende-se que tenha ficado em Lisboa durante a Segunda Guerra Mundial, desistindo de ir para os Estados Unidos, mas depois de 1945, quando o fim do conflito acabou com o discreto charme da neutralidade portuguesa, não ter regressado ao seu palácio em Paris ou se ter fixado em Inglaterra, pátria de passaporte do arménio nascido súbdito do Império Otomano, é menos explicável. A não ser que as colinas de Lisboa e o Tejo lhe recordassem mesmo a Istambul natal. Outros dirão que o advogado Azeredo Perdigão fez ver ao magnata as vantagens da fiscalidade portuguesa e a possibilidade de um lar para a sua coleção de arte, conseguindo assim também fixar a fundação em Lisboa. O resultado final, esse, é que interessa, basta pensar como a Gulbenkian foi até ao 25 de Abril um verdadeiro "ministério da cultura", apoiando mesmo os talentos às avessas com a ditadura. E como hoje nos continua a maravilhar.

Tchaikovsky e Chostakovitch, russos, um do século XIX, outro do século XX. Um súbdito dos czares, outro que foi quase a vida toda cidadão soviético. Ambos eminentes representantes da cultura russa, que não pode nem deve ser confundida com governantes ou regimes mais ou menos efémeros. Se em Nova Iorque ou Zagrebe houve quem achasse que cancelar a música da Rússia ajudava a atenuar o sofrimento dos ucranianos, em Lisboa, felizmente, não foi esse o pensamento, até porque noutro concerto, no início do mês, esta mesma Orquestra Gulbenkian tocou o hino da Ucrânia, a alertar para o horror da guerra. Obrigado, Gulbenkian, obrigado também CCB, por amanhã estar programado um concerto da Orquestra Sinfónica Portuguesa e Coro do Teatro Nacional de São Carlos com obras de Chostakovitch, uma vez mais, e de Igor Stravinski, outro russo genial, mais tarde naturalizado americano.

A fortuna de Calouste Gulbenkian veio do petróleo. E foi em Baku, então nos confins caucasianos do Império Russo, que o jovem engenheiro recém-formado começou a aprender o segredo do ofício. Hoje, por opção recente, a Fundação Gulbenkian já não tem investimentos em petróleo, favorece até as energias verdes. Mas jamais abdicará da cultura.

Artigos Relacionados

No stories found.
Diário de Notícias
www.dn.pt