Ceuta, que foi portuguesa
O brasão de Ceuta, com as quinas, relembra sem dificuldade a ligação a Portugal, mas mesmo assim o líder do PP, o principal partido da direita em Espanha, disse há dias que a bandeira espanhola ondeia há 600 anos na cidade, uma tirada destinada aos marroquinos. Pablo Casado desconhecerá que ali começou em 1415 o império português, uma ação armada que envolveu o próprio D. João I e três filhos, incluindo o futuro rei D. Duarte. E que, ao contrário de Melilla que é espanhola desde finais do século XV, só em 1641 Ceuta teve pela primeira vez um governador castelhano. Esta última data é significativa: trata-se do ano a seguir à restauração da independência portuguesa. E se D. João IV foi globalmente bem sucedido em recuperar as parcelas do império, o enclave cristão no norte de Marrocos decidiu-se pelos Filipes, por um destino espanhol, e até hoje.
Olhando para a vaga humana que entrou em Ceuta há uns dias, candidatos tanto marroquinos como subsarianos à emigração, a perda de Ceuta parece ter sido uma benesse para Portugal. Hoje teríamos de gerir uma fronteira da União Europeia em território africano, uma cidade nos últimos anos transformada em semifortaleza, afinal sem grande sucesso como se viu assim que a polícia marroquina deixou de colaborar (ou pior) com as autoridades espanholas. Por trás de todas as habituais declarações de amizade hispano-marroquinas, escassas no momento, reforça-se a certeza de que no país árabe nem o monarca, nem os políticos, nem o povo deixam de ver Ceuta (e Melilla) como cidades ocupadas. Claro que há diferenças históricas com a presença britânica em Gibraltar desde há três séculos, mas a comparação dará para os espanhóis perceberem (mesmo não aceitando) o que vai na mente dos marroquinos.
A atual crise nasceu, porém, não da questão de Ceuta mas de outro problema mal-resolvido entre Madrid e Rabat, - a soberania sobre a antiga colónia espanhola do Sara Ocidental, abandonada em 1975 e controlada hoje quase a 100% por Marrocos, que a considera uma província sua. Os separatistas da Polisário continuam a reivindicar um Estado e, mesmo se não têm o apoio oficial de Madrid, conseguiram que o seu líder recebesse assistência médica em Espanha, mais do que suficiente para Marrocos se zangar e muito, muito a sério. Pior ainda, se o PSOE sabe bem que é preciso preservar uma boa relação com o vizinho do sul, embora com firmeza quando necessário, já a extrema-esquerda, o Podemos, aliado dos socialistas no governo, prefere aumentar a tensão, reafirmando solidariedade à Polisário no pico da crise de Ceuta. À direita, a mais extrema, o Vox reagiu contra Marrocos ainda com palavras mais agressivas do que as sobre os seis séculos de soberania reivindicados pelo PP. Dá para adivinhar traumas mal resolvidos com Marrocos, ao ponto de se dizer que a direita nunca digeriu o desastre em Annual, batalha de há um século.
E voltemos à hipótese de em 1640 Ceuta ter permanecido portuguesa. Hoje ainda o seria? A resposta nunca pode ser definitiva, apesar de, no reinado de D. José, Portugal ter negociado um tratado de paz que devolveu Mazagão, atual El Jadida. Era a última praça portuguesa no litoral marroquino e a população cristã seguiu para o Brasil, onde na Amazónia foi fundada Vila Nova de Mazagão. Marrocos deixou então, ainda no século XVIII, de ser uma prioridade para Portugal, o que nunca aconteceu para Espanha, que na passagem do século XIX para o XX se fez de novo colonizadora do Norte de África, somando então muito território a Ceuta e Melilla, muito território esse que perdeu depois para Marrocos quando este país se libertou da tutela franco-espanhola, voltando a ficar só com os dois enclaves no norte.
Mas se Ceuta não é um problema português há quase 400 anos, uma degradação das relações entre Espanha e Marrocos por motivos de orgulho nacionalista de certeza terá consequências para o país. Por geografia ou cultura são ambos parceiros demasiado próximos. Seria errado deixar-nos envolver (correu o rumor que Brahim Ghali, o líder sarauí, poderia ter sido reenviado para um hospital português), mas não é errado tentar que o estreito de Gibraltar não seja palco de um conflito gravíssimo.