"Terroristas querem o século VII. Tunísia quer ser democracia do século XXI"

Entrevista a Khemaies Jhinaoui, ministro dos Negócios Estrangeiros da Tunísia, que esteve nesta semana em Lisboa. Fala sobre os desafios do país que é o caso de sucesso da Primavera Árabe e também sobre o legado do presidente Beji Caid Essebsi, que morreu nesta quinta-feira, já depois de a entrevista ter sido feita.
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Ameaça terrorista, sucesso democrático, desafio económico. Como está a Tunísia hoje, quase nove anos depois da Primavera Árabe, da qual foi o ponto de partida?
Primeiro que tudo, a Tunísia esforça-se há muitos anos por estabelecer um regime democrático. E a esse nível foi bem-sucedida. Criou instituições democráticas, realizou eleições livres e transparentes logo em 2011 para uma Assembleia Constituinte, e em 2014 para o Parlamento e para a presidência da República. Também já organizámos eleições municipais. Evidentemente, nestes anos, o país foi atacado pelo terrorismo. Porque aquilo que a Tunísia está a construir é exatamente a antítese daquilo que querem os terroristas. Os terroristas querem levar-nos de volta ao século VII, nós queremos estabelecer uma democracia do século XXI. Ambicionamos ser um país árabo-muçulmano que partilha os valores universais da democracia e dos direitos humanos. E isto num contexto regional que não é favorável: veja-se o que se passa na vizinha Líbia, o que se passa no mundo árabe em geral. Apesar de tudo, a Tunísia tem dado o seu melhor, graças à vontade e determinação do seu povo, mostrando ao resto do mundo que um país do sul do Mediterrâneo escolheu definitivamente a via da democracia, da liberdade de expressão. Também sabemos que a economia permanece o ponto mais fraco do nosso percurso até agora, porque as pessoas quando se revoltaram em 2011 tinham duas exigências: mais liberdade e mais dignidade. A liberdade foi conseguida, o país é livre, quanto à dignidade, quer dizer a criação de empregos, criação de riqueza, de prosperidade, infelizmente a Tunísia tem estado sozinha. E as experiências no resto do mundo têm mostrado que os países em transição necessitam de uma locomotiva, de um apoio exterior, que os ajude a atingir esses objetivos.

Como se explica a excecionalidade tunisina, afinal o único caso de sucesso da Primavera Árabe, basta ver como vão países como a Líbia ou o Iémen? É a história que é diferente da do resto do Magrebe e sobretudo do resto do mundo árabe? É porque o legado laico do pai da independência, Habib Burguiba, é muito forte? É porque a sociedade civil tunisina é forte?
É tudo isso em conjunto. Há mais de 60 anos que a Tunísia fez escolhas decisivas sob a liderança do presidente Burguiba. A Tunísia escolheu universalizar o ensino para rapazes e raparigas até aos 16 anos. O resultado está à vista, uma riqueza imensa em recursos humanos. Homens e mulheres jovens com diplomas universitários. Infelizmente, a economia não tem condições de os absorver, mas essa aposta na educação mudou totalmente a sociedade tunisina. Outra escolha decisiva desde os primórdios do Estado foi a liberdade da mulher. A Tunísia muito cedo adotou um código do estatuto pessoal que é único no mundo árabo-muçulmano, pois concede às mulheres exatamente os mesmos direitos do que aos homens. Tudo isto criou uma sociedade civil, uma classe média muito importante. Ao mesmo tempo, a Tunísia desenvolveu instituições muito sólidas a nível do Estado. Isso faz a diferença para outros países da Primavera Árabe, que infelizmente falharam, e explica a transição pacífica na Tunísia.

A grande ameaça à estabilidade da Tunísia qual é? O contexto externo ou os inimigos do interior, como os jihadistas que combateram pelo ISIS e agora regressam a casa?
As duas ameaças preocupam-nos. A Líbia, por exemplo, é um país não só vizinho como um parceiro importante. Depois da União Europeia, era o nosso maior parceiro comercial. Até 2011, as nossas trocas comerciais rondavam os 2,5 mil milhões de dólares. Estávamos praticamente a viver numa zona de livre comércio com esse país. E havia pelo menos cem mil tunisinos que trabalhavam na Líbia e com as suas remessas de divisas ajudavam a economia nacional. Tudo isso se evaporou e a Líbia, que era uma fonte de oportunidades para o nosso país, tornou-se uma fonte de ameaças, porque depois da intervenção da NATO em 2011 e da queda do regime de Muammar Kadhafi não houve um esforço internacional para ajudar o país a reconstruir-se e a criar um governo central capaz de controlar as suas fronteiras. O que aconteceu foi a Líbia tornar-se um refúgio de todos esses terroristas em fuga das zonas de guerra no Médio Oriente e entre esses há tunisinos que se instalam lá e a partir daí tentam desestabilizar o processo democrático que estamos a construir na Tunísia. Mas se a ameaça terrorista permanece real, ela não é exclusiva da Tunísia. O terrorismo agora ataca um pouco por todo o mundo, mesmo nas grandes capitais mundiais, e portanto nenhum país está imune à ameaça terrorista, mas o que é certo é que a Tunísia tem hoje as suas forças mais bem equipadas e mais bem preparadas para fazer frente ao terrorismo, para os prevenir e não apenas reagir. Os terroristas estão na defensiva e são as nossas forças que os identificam, atacam e impedem de fazer atentados.

Qual é a importância das eleições legislativas e presidenciais previstas mais para o final do ano?
A Tunísia vai mostrar uma vez mais que a opção democrática é irreversível. Que apesar de todas as dificuldades internas e internacionais a determinação de todas as componentes da nossa sociedade - seja a coligação no poder seja a oposição - é avançar. Serão eleições livres e transparentes, na presença de observadores internacionais. E o seu sucesso fará que provavelmente a Tunísia tenha tido a transição democrática mais curta do mundo. Em poucos anos, uma transformação de país totalitário em país democrático.

Fala-se muito da fragilidade do presidente Beji Caid Essebsi. É uma figura de grande peso, mas pode imaginar-se uma Tunísia democrática, estável, num pós-Essebsi?
O presidente Essebsi teve um papel fundamental na criação de equilíbrios que facilitaram a transição democrática. Em 2012, a Tunísia corria o risco de entrar numa guerra civil. Havia uma polarização extrema entre os laicos e os modernistas de um lado e os islâmicos do outro. E Beji Caid Essebsi criou um partido, o Nida Tunes, que permitiu um equilíbrio, salvar o país. Foi graças ao líder do Nida Tunes, presidente da República depois em 2014, que a Tunísia pôde prosseguir o seu processo democrático. A história registará que este político, com grande experiência, desempenhou um papel estratégico para consolidar a excecionalidade tunisina. Claro que tem 92 anos e não se recandidata, mas certamente a Tunísia não é só Essebsi, ele próprio não quereria que assim fosse. Temos uma sociedade civil muito desenvolvida e creio que Essebsi, tal como Burguiba, como líderes nacionais, contribuiu para criar estes ingredientes tão específicos dos tunisinos que permitem ultrapassar as dificuldades. E as Forças Armadas, devo acrescentar, continuam a ter um papel fundamental também para fazer ser bem-sucedido o processo democrático.

Temos falado de Burguiba. É possível em 2019 começar a fazer um balanço justo do que foi a presidência do seu sucessor, Ben Ali, derrubado pela Primavera Árabe?
Ben Ali dirigiu o país durante 23 anos, é um presidente que não podemos ignorar. Faz parte da história da Tunísia e fez coisas positivas, sem qualquer dúvida, nos primeiros anos da sua governação, mas depois, infelizmente, deixou que a sua família, aqueles que o rodeavam, entravasse a democracia, além dos casos de corrupção e tudo o resto. E foi por isso que a revolução aconteceu. Mas há toda uma época da história de um país que dentro de 10 ou 20 anos as pessoas poderão avaliar com algum distanciamento e perceber aquilo que teve de positivo e aquilo que teve de negativo.

Referiu que o país chegou em 2012 a estar à beira de uma guerra civil por causa dos islamitas. Mas a Tunísia tem o partido Ennahda, islâmico, que aceitou o jogo das urnas. Também através deste partido a Tunísia pode mostrar que os islamitas não violentos têm lugar num sistema democrático?
A experiência tunisina, até este momento, mostra que os islamitas podem integrar o processo democrático, mas é preciso mais tempo para tirar conclusões. Não basta uma ou duas eleições. É preciso que o processo continue e que o partido corte todas as suas relações com a confraria dos Irmãos Muçulmanos, algo que o Ennahda deve prosseguir para que se torne um partido político tunisino, que se inscreve na paisagem política nacional.

Como avalia o apoio da União Europeia à Tunísia?
É um apoio importante mas insuficiente. Importante porque é do interesse da Europa ver um país muçulmano próximo ter sucesso. E creio que isso a Europa percebeu, que é importante para ela ver nascer uma democracia a sul do Mediterrâneo. A consciência da necessidade de ajudar existe e essa ajuda aumentou desde 2011, com a criação de um estatuto privilegiado em 2012 da Tunísia junto da União Europeia. Mas consideramos que aquilo que está em causa, o sucesso democrático tunisino, exige dos europeus um maior envolvimento. E isto não quer dizer só mais ajuda económica mas também abrir a possibilidade de os diplomados tunisinos trabalharem com os seus homólogos europeus. Deixar os jovens tunisinos ter acesso aos centros de investigação europeus. Ajudar a Tunísia a desenvolver as suas leis, para que o seu sistema jurídico se aproxime ainda mais do modelo europeu. Permitir uma maior integração da Tunísia no espaço europeu. Nós vimos como Portugal evoluiu depois da adesão à União Europeia, mas não pedimos hoje a adesão, pedimos que nos integrem mais no espaço económico europeu.

Portugal tem um papel a desempenhar?
Sim. Portugal é um país próximo, talvez o mais próximo. Partilhamos uma história comum, uma forte relação cultural. Também estamos juntos no processo 5+5, que junta países das duas margens do Mediterrâneo para dialogar. Portugal é muito sensível ao que se passa na Tunísia e tem feito o seu papel de ajuda, não só a nível bilateral como multilateral. E na construção das nossas instituições, mesmo na construção da nossa Constituição, inspirámo-nos muito na experiência portuguesa. Queremos, claro, também mais comércio e mais investimento. Hoje há 40 empresas portuguesas a operar na Tunísia, mas podem ser muitas mais. Também no sentido inverso queremos mais empresas tunisinas em Portugal. Podemos fazer muito mais, pôr os homens de negócio em contacto e ver se outros setores podem entrar na relação económica bilateral. Podemos ajudar Portugal no Magrebe e no Médio Oriente, também na África subsariana.

Quando representa o seu país, quando viaja, que imagem nota que os estrangeiros têm da Tunísia? É a do país do laicismo? É o estatuto da mulher? É este recente sucesso democrático?
É tudo isso e mais. Também a educação. E muito, muito a história. Somos Cartago. Somos um país com três mil anos de história, com todas essas civilizações que passaram pela Tunísia, os fenícios, os romanos, os vândalos, os bizantinos, os espanhóis, alguns portugueses até, os espanhóis, os franceses, e, claro, os árabes. Tudo isto faz hoje parte da identidade tunisina e explica porque somos um país aberto, tolerante e que acolhe muito bem quem nos visita. O sistema democrático é o coroar daquilo que começou com Burguiba há mais de 60 anos. Uma evolução que distingue a Tunísia dos seus vizinhos. Nenhum fez reformas tão estruturantes como as nossas.

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