Ucrânia é longe da China, mas...
Afirmou Carlos Gaspar ontem aqui no DN, reagindo à invasão da Ucrânia, que "desde a Guerra da Geórgia, a Rússia tem aumentado significativamente os seus investimentos na defesa e não só continua a ser a segunda maior potência nuclear, como modernizou as suas capacidades convencionais de forma significativa e desenvolveu novas capacidades importantes, nomeadamente no domínio cibernético". Sublinhou ainda o especialista em relações internacionais que "não obstante, a Rússia não tem uma capacidade militar comparável à dos Estados Unidos e da NATO, mas tem uma clara superioridade neste domínio crítico na comparação com a China, que é a principal ameaça à sua segurança estratégica no médio prazo".
Partilho desta análise de que a rivalidade histórica entre russos e chineses tem potencial para conflitos futuros, apesar de os dois povos hoje até terem uma opinião recíproca positiva. A expansão do território dos czares para o extremo-oriente fez-se à custa de regiões de tradicional influência do Império Chinês. E se em 1689, através do Tratado de Nerchinsk (com um negociador/tradutor português ao serviço dos chineses!) Pequim ainda conseguiu travar um pouco o ímpeto russo, já dois séculos depois , uma China fragilizada teve de aceitar como facto consumado a perda de vasta área da Manchúria, com os rios Amur e Ussuri a servirem de fronteira. Mal digerida, essa humilhação chinesa sofrida no século XIX, ajudou certamente ao cisma do século XX no mundo comunista (consumado com tiros entre chineses e soviéticos numa ilha do Ussuri) que empurrou Mao Tsé-tung para os braços do americano Richard Nixon, fez há dias 50 anos.
No pós-Guerra Fria, a emergência da China como superpotência rival dos Estados Unidos deveria ter empurrado, desta vez, a Rússia pós-soviética para os braços da América, desfeito que foi o choque ideológico capitalismo-comunismo. Mas mal-entendidos vários, a começar pelo alargamento da NATO a Leste e a acabar na ambição de Vladimir Putin de recriar uma grande esfera de influência russa, conduziram ao atual estado de coisas, com a trágica invasão da Ucrânia a pôr de vez Ocidente e Moscovo às avessas, algo que promete vantagens para Pequim.
"A China tem o desafio de conciliar a parceria estratégica com a Rússia - muito útil para Pequim em termos de abastecimento de energia e de armamentos, rotas da nova "rota da seda" chinesa e de transformação da ordem mundial numa frente anti-EUA a anti-Ocidental - com a manutenção de suficientes boas relações com uma série de economias e países desenvolvidos (sobretudo, europeus, mas também EUA e da Ásia-Pacífico) opositores à agressão da Rússia e indispensáveis à continuidade da ascensão económica da China", diz hoje numa entrevista no DN Luís Tomé, diretor do OBSERVARE-Observatório de Relações Exteriores da Universidade Autónoma de Lisboa. É que por muito incomodada que Pequim se sinta perante o tema Rússia/Ucrânia, afinal não gosta de ingerências nos assuntos internos dos outros países, está já a ganhar duplamente: a energia que tanta falta lhe faz virá de uma Rússia agora com menos alternativas de importadores a Ocidente e a América terá que abrandar a pressão sobre a China no Indo-Pacífico em nome de renovada atenção a geografias de tensão mais a relembrar à época pré-1991, ano da desagregação da União Soviética.
Outro ponto-chave: não desistindo a China da vontade de ultrapassar os Estados Unidos como potência dominante no mundo, muita atenção tem agora posta sobre a determinação de europeus e sobretudo americanos quando desafiados. Pode vir a tirar ilações para projetos futuros sobre Taiwan, que considera uma ilha rebelde, mas que ao contrário da Ucrânia, desprovida de obrigações de proteção por parte da NATO, conta com um acordo de defesa com os Estados Unidos.