Um pedaço de Bacon (1)

Quando a Irmã Mercedes lhe fechou os olhos, na Clínica Ruber de Madrid, ignorava por certo o que aquele homem dissera anos antes sobre alguém que, como ele, partira para o outro mundo aos braços de uma freira. "Morreu num hospício de Málaga, tratada por umas irmãzinhas católicas... haverá coisa mais horrível do que essa?", perguntara ele ao falar da morte de Jane, mulher do escritor Paul Bowles, que conhecera em Tânger, nos anos de maior loucura, os anos em que por um triz não perdera a vida na voragem da violência e do excesso. O seu amante da altura, talvez o amor maior de toda a sua vida, acabou por morrer lá, devastado pelo álcool e pelas dívidas. Bebia três garrafas de whisky por dia, numa vertigem suicidária, e ele soube-o morto quando, no dia da inauguração de uma exposição sua na Tate, poucas horas antes da abertura, recebeu um telegrama de Marrocos com a notícia mais que esperada.

Conseguira libertar-se de Tânger e das garras de um amor louco, deixando para trás, com sequelas profundas, um tempo em que o cônsul-geral britânico na cidade era frequentemente avisado de que, uma vez mais, a polícia o encontrara quase morto às primeiras horas da manhã, moído de pancada numa viela escura, com o rosto desfeito em sangue. Eram tantas e tão frequentes as vezes que isso sucedia que o chefe da polícia de Tânger teve de refrear os alarmes do cônsul, dizendo-lhe: "Pardon, Monsieur le Consul-Général, mais il n"ya rien à faire. Monsieur Bacon aime ça."

E, de facto, Francis Bacon gostava que o espancassem, muito antes sequer de Tânger e de conhecer Peter Lacy, o antigo piloto da força aérea que bebia em excesso, que o agredia, que o humilhava, que lhe destruiu dezenas de quadros em acessos de ciúme e fúria. Uma vez, em Londres, muito antes de tudo isso, Bacon tivera de fugir para a rua seminu, a correr espavorido de uma cena sadomasoquista que por pouco não lhe custava a vida. E, por muito que sempre tenha dito que a sua biografia era irrelevante para lhe apreciar a obra, fugindo de entrevistas ou dos pedidos das galerias para falar mais de si, por muito que isso seja verdade, o certo é que a pintura de Francis Bacon é inseparável da sua vida e esta, em si mesma, é tão interessante quanto os seus quadros.

Foi ele, aliás, que afirmou numa ocasião que a infância era mais importante no percurso dos artistas do que no dos comuns mortais, e que aqueles, ao contrário destes, permaneciam apegados à infância até ao fim da vida, ou quase. O seu caso comprova-o. Muitos dos que o conheceram ficavam surpreendidos com o modo pueril como Francis Bacon se arruinava às mesas de jogo de Monte Carlo, como se encantava com a beleza de uma nova conquista, como gastava fortunas a almoçar e a jantar diariamente nos melhores restaurantes de Londres, em iguarias raras e em vinhos franceses com preços que escandalizavam os seus convidados, alguns deles milionários que lhe compravam os quadros e a quem ele nunca deixava que pagassem a conta. Era também infantil, por estranho que pareça, o modo como Bacon se entregava a jogos de sedução e sexo que, não raro, acabavam em cenas de violência com elevado risco de morte.

Mas se a infância foi tão determinante nele, até pelas piores razões, o certo é que a persona que compôs ao longo dos anos, em especial quando se tornou um pintor conhecido, procurado por galeristas e coleccionadores, pouco ou nada tem que ver com a realidade da sua meninice. Bacon sempre quis transmitir a ideia de que era um artista em estado bruto, um autodidacta selvagem vindo do nada, dos confins da Irlanda profunda, com origens mais do que populares, ou abaixo disso. Nascera numa maternidade do coração de Dublin, em Outubro de 1909, mas nenhum dos pais tinha sangue irlandês. O pai era um antigo capitão dos hussardos, veterano da guerra dos Bóeres, com pretensões aristocráticas, algumas das quais legítimas, que tentava em vão afirmar-se como criador de cavalos de corrida, obrigando os Bacon a uma eterna errância em busca dos melhores locais para concretizar um projecto sempre frustrado, o que, além de arruinar as finanças familiares (da mulher, mais precisamente), criou uma amargura que marcará toda a infância de Francis e dos irmãos.

Eddy Bacon, o pai, ainda era aparentado com o filósofo e estadista Francis Bacon (e com o pintor Sir Nathaniel Bacon) e o seu bisavô, o general Anthony Bacon, distinguira-se nas guerras peninsulares e, mais tarde, como o mais jovem dos oficiais que combateram em Waterloo sob as ordens de Wellington, sendo ferido por duas vezes em combate. Depois disso, formou um exército privado que, ao serviço de D. Pedro, participou na heróica defesa da cidade do Porto, em 1832, durante o prolongado cerco das tropas miguelistas. Nunca foi compensado pelo dinheiro que tinha avançado aos seus soldados, pelo que regressou a Inglaterra na penúria e chegou a ser preso por dívidas. Entretanto, casara-se com Lady Charlotte Harley, filha do 5.º conde de Oxford, seu companheiro de armas nas campanhas peninsulares, cuja mulher fora uma das muitas amantes de Lord Byron. O poeta adorava a pequena Charlotte, filha da sua amante, dedicou-lhe um dos seus poemas mais famosos, Childe Harold. Depois de enviuvar, Charlotte mudou-se para Adelaide, na Austrália, onde dava grandes passeios numa carruagem que pertencera a Byron e que ostentava o seu brasão.

A linhagem paterna de Bacon era, pois, mais ilustre do que este queria fazer crer, na ânsia de se projectar como um marginal inadaptado, que também o foi, em larga medida, mas não da forma que quis transmitir. Pelo lado da mãe, não havia pergaminhos aristocráticos, mas uma fortuna burguesa forjada na era vitoriana que, apesar de rarefeita, permitiu financiar as aventuras equestres do capitão Eddy Bacon, um tirano doméstico que impunha regras espartanas no seu lar, impondo uma pontualidade rígida, proibindo o consumo de álcool (o que, sabendo-se o que se sabe sobre o futuro de Francis Bacon com a bebida, não deixa de ser irónico) e fiscalizando os mais ínfimos pormenores da casa, em busca de permanentes fontes de conflito. Chegava a inspeccionar o cimo das portas à procura de pó, para poder gritar com a mulher ou com os criados. A disciplina era tão rígida que Francis e os irmãos viam os pais raramente: meia hora por dia, durante o chá, e, nem sempre, ao almoço de domingo. As crianças eram deixadas aos cuidados de amas e mordomos, de criadas e de criados, o que, no caso de Francis, era um motivo de regozijo. No convívio com os empregados mais novos e com os moços dos estábulos, descobriu a sua sexualidade, una e inequívoca. Nunca na vida teve dúvidas quanto à sua homossexualidade (definiu-se uma vez como "completamente homossexual") e as únicas experiências que teve com o sexo oposto foram, na juventude, uma ida trágica a uma prostituta que comia batatas fritas em pleno acto carnal e, mais tarde, uma tentativa frustrada com a sua amiga e modelo Isabel Rawsthorne.

O avô materno morrera prematuramente, vitimado pela asma, a mesma doença que perseguiria Francis na juventude e na idade adulta. Por causa dela, sempre foi avesso à prática de desportos e à vida ao ar livre, o que, junto com as suspeitas sobre a sua sexualidade, o tornou o alvo favorito da brutalidade do pai, sobretudo após a morte de Edward, o filho mais novo e mais amado. Diz-se, e não é improvável, que o capitão Eddy mandava os criados mais novos punirem regularmente Francis a golpes de chicote, sendo essa a causa óbvia da tendência masoquista que o marcou desde muito novo. Também a avó materna se casara em segundas núpcias com um sádico, famoso pela sua crueldade para com as crianças e os animais domésticos, e, apesar do divórcio mais do que esperado, a memória das chicotadas infligidas por esse homem atormentará o pintor por muitos e muitos anos. A avó voltou a casar-se e o novo marido, Ketty Supple, foi designado chefe da polícia do condado de Kildare numa época que coincidiu com o início da luta armada dos nacionalistas irlandeses.

A infância e a juventude de Bacon processaram-se, assim, numa atmosfera impregnada de medo, em que ao pavor da figura paterna se juntava o temor constante de atentados terroristas contra a sua família. Com resultados escolares deploráveis, expulso de vários colégios, passava largas temporadas com a avó e o seu novo marido numa casa que parecia um bunker e que, por uma singularidade de construção, tinha as paredes das traseiras com formas curvilíneas. Não se trata de um pormenor irrelevante: essa foi das raras influências na sua pintura que Bacon admitiu e, na verdade, muitos dos seus quadros, quase todos, têm um fundo curvilíneo que acentua a clausura claustrofóbica da cena ou da figura colocadas no primeiro plano. Diz-se também, ainda que Bacon o não tenha admitido, que a presença nos seus quadros, em segundo plano, de observadores ou testemunhas, os attendants, se deveu, muito provavelmente, ao facto de ter crescido sob a ameaça constante de vigilantes e de espiões que rondavam dia e noite a casa da sua avó.

A mudança para Londres, durante a Grande Guerra, para a qual o seu pai voltou a alistar-se, não melhorou as coisas e Bacon guardou para sempre a memória da iminência dos ataques alemães, as noites tenebrosas dos ataques dos zepelins, cuja aproximação fazia soar as sirenes e o pânico.

No pós-guerra, a sorte do pai não melhorou e só o facto de precisar do dinheiro da mulher para alimentar os seus devaneios hípicos manteve um casamento sempre à beira da ruptura.

No Verão de 1926, num episódio que será sempre evocado nas suas biografias, o capitão Bacon apanhou o filho, na altura com 16 anos, vestido com a roupa interior da mãe, a admirar-se ao espelho em poses mais do que efeminadas. A expulsão de casa, previsível e desejada por ambos, agravou os sentimentos de abandono e ostracismo do jovem Francis, que fugiu para Londres, onde teve ofícios vários, quase todos ocasionais, entre os quais empregado doméstico de um advogado próspero e da sua mulher, para os quais só tinha de preparar o pequeno-almoço, limpar a casa e servir o jantar. Já na altura tinha uma atracção obsessiva por restaurantes de luxo e acabou despedido no dia em que o patrão o encontrou a jantar com um amigo numa mesa ao lado da sua... no Ritz.

Não muito depois, irá para Berlim, viagem que terá nele o efeito de uma revelação estética, erótica e existencial. Veio de lá um pintor, ou a caminho disso.

(Continua)

Historiador. Escreve de acordo com a antiga ortografia.

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