Blogues, Zoom ou novelas gráficas, as estratégias dos escritores em pandemia
Meses sem espetáculos, salas de cinema fechadas, festivais adiados. A pandemia de covid-19 obrigou ao confinamento de boa parte da cultura, sem máscara que a salve. Dulce Maria Cardoso acredita que o livro "não tem sido o mais prejudicado, pelo contrário", graças à possibilidade de uma "leitura solitária por definição", mas lamenta que as pessoas estejam a perder muito dinheiro, e isso, assume, é "inimigo da leitura e de qualquer arte".
A autora de O Retorno (2011) confessa já ter passado por "vários momentos" desde março. O primeiro, "muito assustada", presa à atualidade. "Principalmente porque pertenço a um grupo de risco, tal como a minha mãe, e isso era para mim uma ameaça mais séria. Fiquei muito tempo a ouvir notícias, perturbada com o que estava a acontecer e incapaz de pensar muito sobre isso", partilha.
Depois veio a calma, a escrita de crónicas para uma revista, precisamente sobre a pandemia, mas nada de ficção. "Não consegui ainda voltar ao romance também porque a minha vida pessoal se alterou muito. Não estou preocupada com isso, por ainda não estar a conseguir pensar, ou muito menos ficcionar sobre a pandemia, porque se precisa de tempo. Não somos máquinas [...] A ficção é uma sublimação do real e é preciso tempo. Não é quando estamos no meio do turbilhão que estamos a fazer isso", sublinha.
Para José Luís Peixoto o primeiro momento, em que sentiu "o embate", acabou por não durar muito. Começou um livro de poesia que em agosto já estava nas livrarias.
"Foi o livro que escrevi e publiquei mais rapidamente. Chama-se Regresso a Casa, que é um título que tem muito a ver com a quarentena e com tudo o que vivemos, e foi uma forma de lidar com isto tudo. Tem sido um momento difícil, com tudo o que tinha previsto para este ano cancelado", desabafa o autor de Morreste-me (2000) e Cemitério de Pianos (2006), acrescentando estar agora "mais otimista".
Deu início também a um blogue de viagens, uma "forma fácil de levar o trabalho a muita gente". "Neste tempo de pandemia, estas circunstâncias tecnológicas foram muito valorizadas e evoluíram [...] O blogue é muito gratificante porque posso partilhar rapidamente as minhas impressões e ter reações. Isso acaba por ser o melhor lado das redes sociais e destes meios que ainda tentamos entender, e que apresentam às vezes tantos aspetos negativos", avança.
Afonso Cruz, que se considera um "veterano do confinamento", estreitou as ligações com as novas ferramentas tecnológicas. "Uma das coisas que mudaram em relação ao meu tempo, é que havia muito mais solicitações para ter eventos através do Zoom ou outras plataformas, que antes não acontecia com tanta frequência", começa por explicar, sublinhando que, devido à pandemia de covid-19, viu canceladas praticamente todas as iniciativas nas quais tinha previsto participar.
"É difícil recusar. Às vezes, impede-nos de ter aquela concentração que a escrita exige. Em alguns casos, achei interessante porque permite evitar algumas reuniões, ou encontros que podem perfeitamente acontecer à distância", admite o autor de Para onde Vão os Guarda-Chuvas (2013) e Flores (2015).
"Também para um festival, por exemplo, que antes tinha dinheiro para levar 10, 20 ou 30 escritores, de repente, com o Zoom, consegue ter 100 ou 150 porque não paga, ou paga muito menos, e não tem despesas com o alojamento, por exemplo. Por isso temos mais convites para tudo e mais alguma coisa", admite, com um sorriso, não arriscando qualificar esta nova alteração.
"Não sei se é positivo, é uma mudança. A partir do momento em que temos um acesso muito fácil, contínuo e quase omnipresente a determinadas coisas, também deixamos de ter algum critério, de saber escolher. Às tantas não ligamos ou não damos a importância devida. Por outro lado, são estas coisas que não deixam morrer a difusão da literatura", reflexiona.
O regresso à escrita e à leitura tardou algum tempo a chegar a Afonso Reis Cabral (Leva-me Contigo, 2019 e Pão de Açúcar, 2018). "Nos primeiros dois meses fiquei muito sequestrado pela atualidade e pela emergência dos acontecimentos. Não consegui escrever nem ler em condições. Depois dei a volta, em particular na leitura", conta, referindo que passou para o extremo oposto, uma "leitura doentia".
"Quase não fazia nada, exceto ler. No mês seguinte, devo ter lido à volta de 35 obras, quase para compensar. Em particular, novelas gráficas, uma área que não tinha explorado bem, e foi um mundo extraordinário que passei a descobrir", confessa. A escolha do género foi "mais ou menos uma coincidência", mas resgatou-o "de um certo deserto inicial".