Amadeo, o pintor que não gostava de Picasso, morreu há cem anos
Amadeo de Souza-Cardoso morreu há exatamente cem anos. O historiador Luís Damásio apresenta hoje em Manhufe uma biografia em que revela mais de metade da vida ainda desconhecida do pintor modernista.
Na última carta do pintor Amadeo de Souza-Cardoso ao irmão António as suas palavras anunciavam "alguns sintomas de mal-estar". Dias depois, a 25 de outubro de 1918, "depois de uma noite de grande aflição, morre em Espinho" após ter sido contagiado pela gripe espanhola, que matou milhares de pessoas em Portugal e milhões no mundo, recorda o historiador Luís Damásio, casado com Maria Patrocínio, sobrinha-neta do artista.
O historiador tem estudado a sua vida e apresenta hoje em Manhufe, na casa da família do pintor, uma biografia em dois volumes e mais de 800 páginas com novos e ignorados aspetos da vida do artista a que teve acesso privilegiado, desde as condições da própria morte do pintor nascido em Manhufe até àquilo que de mais original tem esta investigação, a revelação da infância e da juventude de Amadeo de Souza-Cardoso até se tornar conhecido aos 18 anos.
A biografia resulta da tese de doutoramento feita na Faculdade de Letras da Universidade do Porto e é editada pela autarquia de Amarante, com o apoio da Fundação Gulbenkian e daquela faculdade, e intitula-se Amadeo, Vida e Arte. Para o historiador, este título não surge por acaso: "É que, para compreender e entender melhor a obra do pintor, precisamos de o conhecer como pessoa e o percurso da sua vida, que se mantém em muito desconhecido." Considera Luís Damásio que o "caminho da sua evolução artística tem de estar interligado com a vida e esta biografia de Amadeo é a mais completa e minuciosa até hoje publicada, pois na historiografia biográfica do pintor apenas foram estudados de forma sistémica os últimos 12 anos da sua vida".
Novidades sobre o artista enquanto jovem
É esse hiato por investigar, os primeiros 18 anos da vida e obra, desde o nascimento em 1887 até 1905, que em muito se foca esta biografia, porque, como alerta o estudioso, "mais de metade da vida de Amadeo ainda é desconhecida". Um alerta que já o historiador de arte José-Augusto França tinha feito em 2011 ao dizer que sobre Amadeo nada se conhece da infância e da adolescência e que só com o conhecimento desse princípio da vida se percebe melhor o homem adulto, e que Damásio seguiu ao realizar esta investigação de que resultou a sua tese, defendida em 2016.
"O objetivo central da investigação é preencher essa lacuna na vida de Amadeo", refere, acrescentando que foi um ponto importante para si aperceber-se através do estudo dos seus desenhos iniciais da evolução ainda muito primária de uma pessoa que não sabe o que quer: "Ele vai ter um percurso muito atribulado porque os pais queriam que tirasse o curso de Direito, vai frequentar o liceu - "tenho o processo escolar que permitiu orientar a cronologia desses primeiros desenhos porque estava anotada nos livros escolares desde a primária" - e acompanhar a evolução que Amadeo faz: "Uma época em que ninguém apostaria que fosse o artista em que se transformou."
Segundo a biografia Amadeo, Vida e Arte, o futuro pintor começa aos 14 anos a ter interesse no desenho e o resultado é aplicar-se nessa arte e provocar um insucesso escolar nas outras disciplinas: "Perde esse ano e reprova no Liceu de Coimbra." O resultado é o de os pais ficarem preocupados e decidirem que o filho irá trabalhar na fábrica Confiança no Porto entre 1903 e 1905: "Isto deixará o futuro artista inconformado, pois o que faz vai contra a sua criatividade num emprego onde as tarefas são repetidas." Mais uma vez, Amadeo não se empenha no local de trabalho e pede para deixar o emprego: "O pai, pragmático, acha então que deve seguir Arquitetura." Passa a frequentar esse curso e é esse o momento em que se começa a conhecer melhor Amadeo. "Mas só no que respeita à vida artística e não na vida pessoal, e, como se sabe, ambas estão associadas", considera Luís Damásio.
O próximo passo da biografia confirma que Amadeo é aconselhado por um tio: "Ele é o seu confidente e frequenta muito Paris, então sensibiliza os pais de Amadeo para que o sobrinho frequente o curso de Arquitetura na capital francesa e em 1905 ele parte para essa cidade. Vai para cursar Arquitetura mas começa a frequentar ateliês e ingressa no de Guity, conhecendo vários artistas importantes e encontrando-se com ele mesmo. Será em 1907 que fica apaixonado pela pintura e que a partir daí assumirá que a sua carreira está na vida artística: a pintura. Há uma carta excecional que escreve à mãe a declarar a sua intenção e na qual diz que prefere ter uma pensão muito menor mas não poderia abdicar da pintura.
"Não houve uma grande empatia com Picasso"
"O pai só em 1909 aceita a situação; curiosamente, será o mesmo ano em que cria a sua assinatura artística, pois até essa data ele era Amadeu, e adota a grafia Amadeo." Para Luís Damásio, este acontecimento dever-se-á provavelmente à sua ligação com o pintor Amedeo Modigliani e a namorada italiana deste, uma influência que era grande: "Modigliani é a porta de entrada de Amadeo para as grandes vanguardas desse tempo e a partir daí integra-se nesse estágio da arte e afasta-se dos compatriotas, que irão seguir um rumo clássico, antigo para ele. Em 1911, faz uma exposição em conjunto com Modigliani e a partir daí segue a sua carreira de pintor."
Segundo Luís Damásio, há aspetos notáveis em Amadeo: "Ele foi o único pintor português que consegue estar com e conhecer os maiores pintores do seu tempo: Matisse e Braque, por exemplo, e privar com muitos como Modgliani, Brancusi, Chagall, Sonia e Robert Delaunay. Conhece Picasso, mas não conviveu com ele por uma questão de feitio. Apercebi-me de que não houve uma grande empatia entre Picasso e Amadeo, mas conheceram-se."
Desenhos e documentos inéditos
Quando se questiona quais são as novidades trazidas por esta biografia que hoje é apresentada, Damásio destaca algumas: "O que me surpreende é que Amadeo vai estar sempre ligado e envolvido aos fortes laços da casa de Manhufe, à família e à terra. Tem dois lugares eleitos: Manhufe, onde está o coração, e Paris, onde está o artista. É nesta última onde evolui e que está o epicentro da sua arte, conseguindo conjugar os dois mundos distintos em que a sua vida decorre e coexiste; o da vida tradicionalista, familiar, monárquica e católica com o vanguardismo. Viver entre esses dois mundos, sentir-se integrado e em harmonia é uma novidade, até porque está muito envolvido com a família e tenta reproduzir as suas paixões, sentimentos, gostos e o que faz parte da sua vivência nas obras que pinta."
Um dos capítulos que mostram a vida de Amadeo através do que pinta é o que confirma o interesse entre a própria arte e a vida. "Reconhece-se Manhufe, a cozinha da casa ou a procissão em Amarante. Está a conhecer-se o homem, a arte e a sua vida, de alguém que, quando se realiza em 1913 a grande exposição na América, não é ele que quer ir mas sim convidado, através de Gertrude Stein, e na qual tem um sucesso porque leva oito quadros e vende sete", descreve o historiador, também através de cartas inéditas como aquela em que escreve ao tio e diz "a minha arte provocou muito ruído", a forma como os artistas se referiam quando corria muito bem a sua participação.
A biografia que hoje é apresentada conta com mais de mil ilustrações, entre as quais muitos desenhos inéditos, e irá permitir ao público conhecer também o estúdio do artista, que tem estado fechado desde a sua morte: "Amadeo, quando é reconhecido e aceite pela família como pintor, pede aos pais para construir um estúdio em Manhufe, em 1910. O ateliê é fechado após a sua morte, até aos dias de hoje, podendo-se ver hoje como estava no seu tempo."
O único lamento do historiador em relação a Amadeo de Souza-Cardoso é o facto de se manterem desaparecidas várias das suas telas: "Não se sabe o paradeiro de algumas obras, que estarão em coleções particulares e extraviadas em Paris e na América. É uma busca em que estamos empenhados, pois não podemos desistir de as encontrar."