Unidades de Saúde Familiar empurram utentes sem médico de família para centros de saúde sobrelotados
O governo assumiu o compromisso de aumentar o número de USF para garantir cuidados primários mais próximos e completos. No entanto, os utentes sem médico de família não podem ser atendidos nestas unidades e têm de se deslocar a um centro de saúde, fora da sua zona de residência.
O governo prometeu: as unidades de saúde familiar (USF) vão aproximar médicos e doentes e, por isso, a tendência é para universalizá-las. Neste modelo de organização de cuidados primários, todos os utentes têm médico de família. Mas o que acontece aos doentes que não têm médico? Não podem ser atendidos nas USF, têm de se deslocar a um centro de saúde, fora da sua área de residência.
É o que está a acontecer aos moradores da freguesia de São Vicente, em Lisboa, onde o centro de saúde foi substituído pela USF Mónicas, em junho. Estavam sem médico de família atribuído 2903 utentes, número enviado ao DN pela Administração Regional de Saúde de Lisboa e Vale do Tejo (ARSLVT). Passaram todos a pertencer ao centro de saúde da Alameda, que fica noutra freguesia lisboeta, a de Arroios, onde continuam sem médico de família e a sala de espera está quase sempre lotada.
C.F. mora no bairro da Graça (na freguesia de São Vicente), onde estava inscrita no centro de saúde com médica de família atribuída, desde 2006, ano em que nasceu o seu filho. Os dois foram acompanhados por esta médica durante pelo menos cinco anos, altura em que a profissional de saúde se reformou. "Deixámos de ter médico de família, apesar de ter solicitado várias vezes. Até porque o meu filho era menor de 12 anos", diz ao DN. Não obteve resposta ao pedido e desde então que mãe e filho não têm médico de família. No entanto, para uma gripe, para exames ou para fazer um penso continuaram sempre a recorrer à mesma unidade de saúde de cuidados primários. Até setembro.
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"Era utente daquele centro há pelo menos 13 anos, conhecia as pessoas, é mais próximo de minha casa."
"Em agosto de 2019, quando me dirigi ao centro de saúde, disseram-me que a partir de setembro já não poderia ser atendida naquela unidade - nem o meu filho - porque não tínhamos médico de família e tínhamos de ser encaminhados para o centro de saúde da Alameda. Fiz um pedido ao diretor da USF a expor a situação: era utente daquele centro há pelo menos 13 anos, conhecia as pessoas, é mais próximo de minha casa, sempre ali tinha sido atendida", explica. Mas mais uma vez não obteve resposta.
Tem de se deslocar à Alameda, quando precisar de ir ao centro de saúde, o que nos últimos tempos tem sido frequente, desde que o filho fez uma lesão na mão direita. As "instalações são antigas, há poucos funcionários e estes não sabem sequer dar uma informação correta. Além de continuar sem médico de família", refere C.F.. "Neste centro de saúde [da Alameda] nunca atendem o telefone ou respondem a e-mails. Para pedir um atestado ou uma baixa médica é obrigatório recorrer ao Serviço Nacional de Saúde e para obter estes documentos sou obrigada a faltar no mínimo um dia ao trabalho. Já esperei cinco horas apenas para marcar uma consulta para o dia seguinte."
Na pequena e preenchida sala de espera da unidade de saúde da Alameda, onde o DN se deslocou na passada quinta-feira de manhã, as queixas repetem-se. "Isto é uma loucura. Está sempre muito cheio, esperamos muito e não sabemos sequer se vamos ser atendidos. Há muitos estrangeiros e os funcionários não estão preparados. Eles não falam português e os funcionários não falam outras línguas. Ninguém se consegue entender", diz Sónia Silva, enquanto espera por ser chamada para uma consulta. Está sem médico de família há três anos, mora no Beato e foi reencaminhada para este centro de saúde.
No centro de saúde da Alameda há 14 médicos, 13 enfermeiros, sete secretários clínicos e um interno, segundo dados disponíveis no site da ARSLVT. Na mesma página, é possível ver que 49,99% dos 42 961 utentes ali inscritos não têm médico de família. Um número que tem aumentado por causa da transferência de utentes que pertencem a outras freguesias.
O Agrupamento de Centros de Saúde (ACES) Lisboa Central está "ciente desta situação" e "está a envidar todos os esforços para que logo que seja possível atribuir médicos de família a estes utentes", garante a ARSLVT, em resposta ao DN. "Importa realçar que, apesar de estes utentes ainda não terem médico de família atribuído, os cuidados de saúde continuam a estar assegurados."
Mais unidades de saúde familiar
"Por principio, as UFS vieram melhorar os cuidados de saúde primários e há provas dadas disso. Estamos no bom caminho, o conceito está correto. Transitoriamente, pode levantar alguns problemas, mas serão aceitáveis se forem transitórios e por pouco tempo. Ainda assim, tem de haver condições para minimizar os problemas", diz Rui Nogueira, presidente da Associação Portuguesa de Medicina Geral e Familiar.
O modelo, inspirado no sistema inglês, foi introduzido em Portugal em 2006, pelo então ministro da Saúde, António Correia de Campos, e é um dos pilares da reforma dos cuidados primários, que tem vindo a ser alvo de investimento desde o início. E deverá continuar a ser, promete o executivo. Até ao final do ano, estarão a funcionar mais 20 USF, indicou o primeiro-ministro, no debate de apresentação do programa do governo para esta legislatura, no final de outubro.
"Não acho que seja possível encontrar soluções no quadro atual, não pode ser só com a criação de USF. São precisos mais especialistas, mas temos condições para resolver este problema até abril, com a abertura de dois concursos. Estarão disponíveis 400 médicos para ingresso na carreira médica. Pode ser uma parte ótima da solução se forem devidamente enquadrados com boas condições para que queiram ficar no Serviço Nacional de Saúde", alerta Rui Nogueira.
Há 600 mil portugueses sem médico de família
A promessa de dar médico de família a todos os portugueses é repetida incessantemente. Durante a legislatura passada, a ministra da Saúde afirmou que o objetivo era atingir esta meta, mas em setembro - antes das eleições legislativas - ainda havia cerca de 600 mil utentes sem médico, nas contas de Marta Temido.
O voto renova-se no novo mandato: é preciso atribuir médico a todos. No entanto, o número de profissionais que atingem a idade da reforma (2000 médicos) nos próximos quatro anos é superior ao da formação de novos especialistas (1800). De acordo com dados da Administração Central do Sistema de Saúde, publicados na página BI da reforma dos cuidados primários, o pico de médicos de família com mais de 66 anos será atingido em 2021, quando 522 profissionais estarão sujeitos a deixar o Serviço Nacional de Saúde.