"As pedreiras levaram-me dois irmãos. É só armadilhas"
Ali em cima fica uma estrada entre duas pedreiras. Tal qual como a outra, também esta, conta Maria Adelaide Batanete Queiroz, estava "toda rapada" e ruiu. "Mas foi de noite, assim ninguém morreu. As pedreiras aqui é tudo muito inseguro."
Estamos em Fonte Soeiro, freguesia de Pardais, Vila Viçosa. A estrada, ou o que resta dela depois da barreira que veda a passagem, é um matagal. Para avançar seria preciso uma catana, que não faz parte do material habitual de reportagem. De um lado e doutro, portões de entrada interdita a "pessoal não autorizado" e avisos com bonecos incautos a resvalar por declives: "Perigo de queda em altura." Não se vê ninguém a quem pedir autorização de acesso, ninguém a quem fazer perguntas.
O frio húmido da rua contrasta com o quentinho do café de Maria Adelaide, cujo marido, de 53 anos, trabalha na extração de mármore desde os 16. E toda a gente tem vontade de falar com os estranhos de Lisboa que vêm comer uma sopa com pão e queijo alentejano por dois euros e meio. Dois euros e meio a dividir por dois, porque o prato do dia já acabou: "Quando abrimos, há 22 anos, tínhamos muita gente a almoçar. Agora as pedreiras fechou tudo e fazemos pouca comida para não estragar."
Pedreiras abandonadas há muitas. Serão umas 130, entre abandonadas e suspensas. Há uma atrás do café, por exemplo. Já lá voltaremos, a essa pedreira. Agora Maria Adelaide está a contar como o pai dela, que já morreu, ficou sem um pé nesse trabalho. "Foi há 31 anos, a 28 de agosto. Ele tinha 52 anos, caiu-lhe uma pedra em cima. E veja lá que sem um pé ainda o quiseram pôr outra vez a trabalhar no mesmo." Abana a cabeça. "Aleijou-se muita gente neste trabalho. E morreu muita também. O meu pai viu morrer dois colegas com uma grua que lhes caiu em cima. Ele tinha chamado a atenção do encarregado, por achar que havia perigo, mas ele não lhe deu ouvidos. E depois quando os desgraçados morreram foi ter com ele e perguntou: "Atão e agora?" E ele só abriu os braços, como quem diz paciência." Imita o gesto. "O meu pai teve de andar a apanhar os miolos de um deles."
Noutra mesa, um senhor com mais idade mete-se na conversa. É eletricista, nunca trabalhou nas pedreiras, mas sabe de muitas histórias. "Dantes os homens punham-se em cima das pedras com as máquinas a fazer furos para as partir e às vezes elas abriam e fechavam-se sobre eles." Com as mãos faz o movimento de ratoeira. "Até acabaram com isso porque morria muita gente."
Na sua voz rouca, Maria Adelaide confirma. "A correr tanto risco por tão pouco dinheiro. Sabe que há 15 anos que não os aumentam um cêntimo? E a maioria ganha o ordenado mínimo. Para ganharem 800 euros, como o meu marido, é preciso andarem lá desde miúdos."
A rua tem o nome do patrão de uma pedreira: Cochicho. Maria Adelaide sai do café para acompanhar os forasteiros, sempre a falar. "Antes isto era tudo lama. Tínhamos de andar sempre de botas de borracha. E só fizeram a estrada para substituir a outra quando aquela ruiu." O eletricista reformado assente: "Antes do 25 de Abril isto era uma desgraça."
Foi há 44 anos, vai para 45, o 25 de Abril. O tempo passa, as esperanças também vão passando. Algumas desgraças ficam. A do trabalho tão duro e perigoso e mal pago dos homens - só homens, parece, de 500 a 600 segundo as últimas contabilidades oficiais - que andam nas pedreiras e as que esse labor vai produzindo por incúrias, incompetências, facilitismos. Leis que não são aplicadas, fiscalizações que não são efetuadas, pragmatismos nem sempre mal-intencionados, o medo de denunciar que o sindicalista Nuno Gonçalves, do Sindicato dos Mármores do Sul, assevera existir nos trabalhadores. Um medo maior que o de morrer ou ficar inválido: o medo de não ter trabalho.
"Se eles reclamam, vão para a rua. Tás mal? Há quem queira. Porque aqui não há mais trabalho." Maria Umbelina Moreira Xavier, 61 anos, sabe do que fala: o marido, que já morreu, trabalhou nas pedreiras; o mesmo faz um filho, que passa a correr para almoçar, sem tempo para entrevistas, e abala ao som da sirene que chama para o turno da tarde, mais dois irmãos lá andaram toda a vida.
Um deles é João Xavier, o Pelé. Fazia 57 anos na terça. O corpo, que as autoridades tentavam desde segunda-feira resgatar no fundo da pedreira, será encontrado apenas na noite de sábado, graças a cães pisteiros. Mas hoje, este momento em que Umbelina fala com o DN, é ainda quinta, a meio do dia.
"Mãe, não vais acreditar, foi o tio Pelé." Umbelina soube assim, num telefonema da filha, que tinha visto a notícia na Internet. Acorreu a casa da mãe, de 85 anos, a acompanhá-la nestes dias terríveis. É aí que ouve o "boa-tarde" de dois repórteres à procura de indicações. Vem à porta ver quem é. Quando percebe que são jornalistas comove-se: "Ai o meu irmão que ainda não o encontraram."
Procurar pedreiras e, completamente por acaso, deparar com a família de uma das vítimas. No pequeno pátio, os jornalistas desfazem-se em desculpas: não querem incomodar, ser intrusos na dor. Mas Umbelina não leva a mal. Quer falar. Quer contar que perdeu outro irmão para a indústria do mármore. "Foi há 38 anos. Éramos cinco irmãos, ele era o mais novo. Tinha 8 anos, foi aos ninhos ali em cima, naquela pedreira. Ia com outros dois rapazes e subiu para cima de uma pedra. Aquilo resvalou e ele caiu. Os outros ficaram a chorar, nem chamaram ninguém. Foi um homem que ia a passar que perguntou onde estava o outro e o viu no fundo da pedreira. Tiveram de trazer uma grua para o tirar." Indigna-se: "As pedreiras levaram-me dois irmãos. Isto aqui é só armadilhas."
Da morte desse irmão não houve, crê, qualquer compensação para a família. "Os meus pais não receberam nada, nada, nada."
E passado todo este tempo a pedreira ainda é um buraco abandonado, sem vedação. De acordo com a lei, assevera o sindicalista Nuno Gonçalves, se uma pedreira está desativada e deixa de ter responsável técnico, a responsabilidade passa a ser do proprietário do terreno. Mas, aparentemente, não existe obrigação de tapar os buracos. Certo é que ao enorme buraco da pedreira desativada de um dos lados da estrada que ruiu na segunda-feira ninguém tapou, como ninguém obrigou a que se tomassem medidas de segurança na pedreira em laboração, aquela onde trabalhava João Xavier.
"Qual segurança. Qual é a segurança para eles que andam naquelas profundezas", pergunta Umbelina. "O meu marido, graças a Deus, só ficou sem a cabeça de um dedo. E o meu outro irmão que mora ali à frente partiu um ombro, caiu-lhe uma coisa em cima. Eles usam luvas, capacete, botas de biqueira de aço. Mas não chega."
Agora, suspira, "ninguém sabe nada. Mas aquela estrada, toda a vida a conheci assim. Todo o mundo sabia o que ali estava." Como assim? "Quem lá trabalhava, os donos das pedreiras. Nós que ali passávamos não sabíamos o que ali estava, o que estava lá debaixo. Cá de cima não se percebia que aquilo estava até à beira."
Maria Adelaide confirma. "De um lado havia arbustos, do outro uma vedação. Quando passávamos não suspeitávamos. Se eu soubesse que aquilo estava assim, Deus me livre se passava ali. E a carreira Expresso tinha passado naquela manhã, e todo os dias um autocarro com 40 crianças para a escola em Vila Viçosa, já viu? Ninguém tinha conhecimento do perigo."