Um país encravado

Que conclusão tirar da recente escolha de Astana pelo chefe da Diplomacia americana para uma reunião com os ministros dos Negócios Estrangeiros dos países da Ásia Central; também de a capital cazaque ter sido o primeiro destino do presidente chinês em setembro passado depois de longa ausência de viagens ao estrangeiro por motivo da pandemia;e ainda da celeridade com que o Kremlin enviou tropas para Cazaquistão no início de 2022 para ajudar a proteger instalações vitais ameaçadas por protestos violentos e as retirou logo que se tornaram desnecessárias? A resposta é a indesmentível centralidade geopolítica do Cazaquistão, colosso territorial entre a Rússia e a China, potência petrolífera também rica em urânio.

Tanto os Estados Unidos, superpotência longínqua mas com interesses globais, como a Rússia e a China, potências suas vizinhas, querem ter boas relações com o Cazaquistão e tirar o maior partido possível da sua política externa multivectorial, nascida na era de Nursultan Nazarbaiev e mantida pelo atual presidente, Kassim-Jomart Tokaiev. E a tensão entre o Ocidente e a Rússia ( e de certo modo com a China) tem exigido grande capacidade à liderança cazaque de mostrar agilidade diplomática, ao mesmo tempo que prossegue o processo de democratização que visa fazer esquecer os motins de janeiro do ano passado, que começaram por ser contra o aumento dos combustíveis e evoluíram para motins gravíssimos nas grandes cidades, sobretudo Almaty, o que forçou Tokaiev, no poder desde 2019, a romper com o patrono Nazarbaiev, o homem que conseguiu a independência daquele que é o nono maior país do mundo (apesar de só ter 20 milhões de habitantes).

Antony Blinken declarou em Astana a 28 de fevereiro o apoio total dos Estados Unidos à "soberania, independência e integridade territorial" do Cazaquistão, um país enorme, com grande diversidade étnica, que tem sabido gerir com sabedoria estas três décadas pós-desagregação da União Soviética. Ao contrário de outras repúblicas ex-soviéticas, nunca houve separatismos, mesmo que em vastas áreas do norte do país a etnia cazaque seja minoritária em relação aos eslavos, na sua grande maioria russos que chegaram durante a expansão czarista ou já em meados do século XX para a chamada campanha de desenvolvimento das terras virgens, em que o regime comunista, através de ordens vindas de Moscovo, pretendia transformar a estepe em campos de trigo.

Blinken também aproveitou a ocasião para apoiar o processo de mudanças políticas no Cazaquistão, que passou já por um referendo constitucional (junho de 2022), por uma eleição presidencial (novembro de 2022) e, no passado domingo, por legislativas. O partido Amanat, sucessor do histórico Nur-Otan fundado por Nazarbaiev, venceu com maioria absoluta, mas as novas regras para criação de partidos e eleitorais permitem haver agora em Astana um parlamento mais colorido do que era habitual. A OSCE, que teve uma equipa de observadores a acompanhar as eleições, elogiou os progressos feitos, mas alertou que ainda há muito caminho a percorrer para verdadeira competição política. O Amanat, que associa conservadorismo social a liberalismo económico e pratica uma boa dose de laicismo num país de maioria muçulmana, além das vantagens óbvias de ser o partido do poder, beneficia também do prestígio de ter sido criado pelos líderes do processo de independência, um pouco como o Partido Republicano do Povo depois de 1923 na Turquia, do Partido do Congresso após 1947 na Índia ou do ANC na África do Sul pós-fim do Apartheid em 1994. Mesmo assim a elevada abstenção, nomeadamente em Almaty (ex-capital e a mais cosmopolita das cidades cazaques), é um sinal para Tokaiev de que há reivindicações por satisfazer.

A estabilidade política do país passa muito por se manter na senda da prosperidade que os vastos recursos naturais lhe ofereceram desde o primeiro momento da independência. O Cazaquistão integra, segundo as Nações Unidas, o grupo dos países de desenvolvimento muito elevado, tendo acima na tabela, entre as 15 antigas repúblicas soviéticas, apenas os três Estados Bálticos e a Rússia. Ora, com fortes ligações à economia russa (7600 km de fronteira comum) e com as suas exportações de petróleo e de gás a transitarem por território russo, o Cazaquistão precisou de negociar com os Estados Unidos e os parceiros da União Europeia cláusulas de exceção às sanções ocidentais contra Moscovo, que exigem extrema atenção das autoridades para serem cumpridas. Ao mesmo tempo, para manter boas relações com a Rússia, os cazaques têm-se abstido de condenar Moscovo nas votações na ONU sobre a invasão da Ucrânia, o que não impede que o seu país, onde o russo coexiste com a lingua cazaque, sirva de refúgio para muitos descontentes com a forma de governar de Vladimir Putin. E não podem deixar de cativar os investimentos americanos e da UE.

Digamos, pois, que a ambiciosa diplomacia multivectorial do Cazaquistão está a ser hoje testada ao limite, e que os desafios são enormes para Tokaiev, o diplomata poliglota à frente do maior país do mundo sem acesso ao mar, o que em português também se diz um país encravado.

Diretor adjunto do Diário de Notícias

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