Reflexo de Salazar no espelho português está a ficar menos nítido
Cinquenta anos após a morte, António de Oliveira Salazar está mais esquecido, deixou de fazer parte das conversas e nem os taxistas o usam para dizer "no tempo de Salazar é que era bom". Essa é a conclusão que se pode retirar nos dias que antecedem esta efeméride, suportada na inexistência da habitual vaga de livros que nestas datas costumam chegar às livrarias, como aconteceu no centenário da República em 2010, por exemplo. Mais, Salazar não desperta em si próprio o interesse dos historiadores e mantém-se apenas com uma biografia exaustiva - sem contar com o trabalho de Franco Nogueira lançado pouco depois do 25 de Abril -, a que Filipe Ribeiro de Meneses publicou há uma década.
Ainda se pode dizer que esta biografia com 800 páginas não foi desafiada, uma escassez de trabalhos a nível académico que surpreende o autor, como refere num balanço feito ao DN sobre o ditador: "Eu gostava de poder responder a essa questão, mas não percebo porque foi a minha a primeira sobre o governante e espanta-me que não haja novas biografias escritas por historiadores portugueses ou estrangeiros desde então." Para Ribeiro de Meneses, a explicação pode estar "na relutância por parte dos historiadores portugueses em abordar o tema". Quando se questiona o porquê dessa situação, pensa um pouco e responde: "Esse medo, ou seja lá qual for a razão, deve resultar do desejo de evitar as controvérsias que daí viriam." A outra explicação que equaciona é ser "um projeto que não se coaduna com o género de financiamentos existentes hoje, porque é uma investigação que demora muito tempo e um género que as instituições não apoiam".
Razões que levam Filipe Ribeiro de Meneses a acrescentar: "Também porque ocupar o tempo necessário para um trabalho destes seja difícil de encaixar numa carreira académica portuguesa, no entanto existem professores antigos e conceituados que não dependem assim tanto de financiamento e que se poderiam dedicar a este projeto." Em conclusão, diz: "Acho estranho que não sejam atraídos por uma figura tão grande da nossa história!"
Responsável nos últimos anos por vários trabalhos académicos pessoais e coletivos em torno de Salazar e da sua época, o investigador António Costa Pinto considera que o filão Salazar está em baixa: "Quando olhamos para a história contemporânea, verifica-se que após uma vaga muito significativa no final dos anos 1990 e nos últimos 20 anos de estudos sobre o Estado Novo - a repressão, a censura, o papel das elites política, económica e industrial, os aspetos estruturais da Câmara Corporativa e da Assembleia Nacional - , no entanto, mais recentemente esta área de estudos sobre o Estado Novo tem declinado em muito."
Não que o tema se tivesse tornado inexistente, mas segundo Costa Pinto o grande desenvolvimento da última década nestes estudos transferiu-se para a "dinâmica colonial e até o que chamamos de colonialismo tardio, ou seja, a época da descolonização e não apenas a das guerras coloniais". Assim sendo, entre os novos temas que se abordam está "o lusotropicalismo, o sistema colonial de Portugal nas organizações internacionais a propósito do trabalho forçado nas colónias, por exemplo, além da própria Guerra Colonial e dos mitos de um novo Brasil em Angola". Para o historiador, "houve uma viragem da atenção da historiografia para a questão colonial, mesmo que estejamos sempre a falar do Estado Novo, pois no caso português o colonialismo e a descolonização confundem-se".
Segundo António Costa Pinto, Salazar em si próprio está ao sabor das modas da história: "O que se produz atualmente remete mais para tendências na historiografia." Mas, alerta, não deixa de ser "curioso que desta data redonda sobre Salazar não tenha resultado sequer uma biografia; desde a de Filipe Ribeiro de Meneses que não temos outra, mesmo que todos os anos os historiadores profissionais concorram no mercado intelectual com romancistas e jornalistas em novos livros e sejam publicadas biografias constantes de grande figuras: Hitler tem dezenas, Churchill também, de Franco há várias; só de Salazar é que não".
Com Salazar esquecido, ou sendo matéria pouco atraente, no entanto os historiadores portugueses continuam a produzir estudos sobre o Estado Novo, mas, como assinala Costa Pinto, "o número de trabalhos declinou em importância e o que tem ressurgido a propósito desta época é mais desenvolvido pela ciência política, como a memória do Estado Novo em democracia". O próprio está neste momento a coordenar um volume coletivo com historiadores latino-americanos, holandeses, dinamarqueses, entre outros, sobre a imagem de Salazar junto das elites conservadoras e autoritárias e a influência que o governante teve noutras ditaduras do seu tempo: "Salazar é citado na Grécia, na Eslováquia, no Chile, no Peru, por exemplo, ou seja, a ditadura de Salazar e o seu estilo político enquanto alternativa conservadora interessou a outros países."
Quanto ao tema biografia de Salazar, António Costa Pinto não conclui sem chamar a atenção para um facto: "Se Salazar tem um problema em termos de biografia, já o seu sucessor, Marcelo Caetano, deu origem a duas biografias nos últimos anos!"
Quando se confronta o historiador Fernando Rosas sobre o facto de, 50 anos depois, não se ouvir o nome de Salazar tão frequentemente, este concorda: "Não se ouve, é verdade." Acrescenta: "Salazar como mito também se vai perdendo, afinal as novas gerações não se reveem nesses valores e, sobretudo, não têm a vivência desse passado que a minha geração teve. É natural que vivam de maneira diferente da dos que viveram esse clima de dramatismo, até porque os valores matriciais democráticos estão adquiridos e relativamente sólidos, como o Estado de direito, mesmo que estejamos numa Europa com muitos problemas."
Rosas vai mais longe e avança uma comparação histórica sobre o esquecimento de Salazar na atual sociedade portuguesa: "A distância também vai desmistificando essas personagens históricos. Os mais novos olham hoje para o 25 de Abril como a minha geração olhava para o 5 de Outubro e, provavelmente, Afonso Costa, que também foi um mito para os republicanos, nada lhes diz. É certo que o regime de Salazar durou meio século do século XX português, foi um grande peso sobre a economia, as liberdades e o desenvolvimento, mas está quase a passar outro meio século sobre a Revolução de 1974 e o tempo nestas coisas desempenha um papel desdramatizador."
O autor de vários livros sobre Salazar e o Estado Novo, como Salazar e o Poder - A Arte de Saber Durar, caracteriza este olhar sobre certas figuras do passado de uma forma crua e realista: "Há coisas do salazarismo que passaram irremediavelmente à categoria de velharias históricas, sociais e culturais. Há valores do tempo de Salazar que deixaram de ter lugar, porque não são os nossos atuais ou os da Europa, como os da ruralidade, da pobreza honrada, da religião como um princípio estruturante da vida em sociedade, do fechamento enquanto país e da desconfiança em relação à modernidade e o cosmopolitismo. Tudo isso, que era a cultura do salazarismo, perde-se num canto do passado com a participação europeia e a vivência da democracia."
Se os historiadores portugueses se demarcam da tentativa em fazer biografias sobre Salazar, já na área jornalística essas tentativas ainda não chegaram ao grau zero, tanto que o trio José Pedro Castanheira, Natal Vaz e António Caeiro publicaram em 2018 um volume intitulado A Queda de Salazar - O Princípio do Fim da Ditadura, e há poucas semanas foi a vez de José António Saraiva lançar o primeiro de três volumes, Salazar - A Queda de Uma Cadeira Que não Existia, em que tenta provar que o modo como aconteceu o fim de Salazar, a célebre metáfora real que resulta da queda de uma cadeira, é completamente diferente da verdade do que aconteceu em 1968. Para Saraiva, tudo está errado na evocação dos acontecimentos: a cadeira nunca existiu, Salazar não estava no local que se diz nem a tratar dos pés, nem o dia do acidente é o que se aponta. Erros que não existem apenas neste episódio mas em muito dos acontecimentos do Estado Novo na sua opinião, tanto assim que se propôs escrever uma verdadeira história do Estado Novo: "Cheguei com frequência a conclusões diferentes da que a história oficial consagrou."
Salazar deixou de estar no espelho
Quando se pergunta a Filipe Ribeiro de Meneses, o autor de Salazar - Uma Biografia Política, se Salazar ainda é um espelho para o Portugal atual ou é uma imagem difusa e que já não desperta interesse aos portugueses, a resposta parte do sucesso do seu livro: "Continua a despertar um interesse que ultrapassa o mundo académico", concluindo que "os portugueses têm ainda consciência de que Salazar marcou indelevelmente Portugal - não estou a dizer que pela positiva -, afinal esteve muitos anos à frente do governo, tomou decisões e adotou posturas que têm ainda uma influência grande sobre os nossos destinos". Em poucas palavras, adianta uma sentença: "Ainda não ultrapassámos o legado, pois este não desapareceu e continua a ter muito peso."
Para Ribeiro de Meneses, o "legado" de Salazar ainda marca parte da população: "Quem tenha 80 anos, tinha 30 quando morreu Salazar; foram 30 anos passados sob o seu governo. E assim por diante, por isso há ainda uma enorme faixa da população que se lembra dele e que possui toda uma experiência vivida diretamente ligada a Salazar, seja na forma de ser, de pensar e de agir, visíveis ainda hoje em Portugal. Mas, se são o resultado da maneira de ser e de governar o país de Salazar, também se tornam uma reação contra ele. A oposição a Salazar era total em alguns e essa postura mantém-se enquanto figura que polariza a opinião."
Quanto ao legado junto dos atuais partidos políticos, pergunta-se se estas estruturas ainda influenciam ou a ideologia de Salazar foi apagada da atualidade. Ribeiro de Meneses não tem dúvidas: "Não no que respeita aos partidos clássicos e históricos que nasceram depois do 25 de Abril e que tiveram representação parlamentar desde então. Quanto aos novos partidos que têm surgido, a minha condição de estrangeirado impede-me de conhecer bem essa realidade, mas sei que há uma grande polémica em torno do Chega, mesmo que este me pareça não se rever diretamente nos princípios e na ideologia de Salazar."
Também Fernando Rosas suspeita das influências de Salazar nos novos partidos de extrema-direita em Portugal, mas é perentório no facto de que Salazar é um mito que está posto na estante: "Diria que sim, e que Salazar só sobrevive como símbolo numa certa extrema-direita que o usa mitificando-o, mas ao recorrer a mitos do passado como o de Salazar, e ao tentar fazê-lo reviver, não o consegue senão de uma forma artificial." Acrescenta: "Do ponto de vista estritamente político, muitas vezes esquecemo-nos de que a Constituição de 1976 e o sistema político posterior assentaram de uma forma geral num consenso - inclusivamente com os partidos da direita que se reorganizaram durante o processo revolucionário, como o PSD e o CDS -, que foi o da recusa da herança política e ideológica do salazarismo."
Rosas regressa há quase cinquenta anos e chama a atenção para o facto de, "ao contrário do que se passou na transição em Espanha, onde continua a existir a herança e a reivindicação da continuidade do franquismo através de um partido de direita, que é de alguma forma continuador da ideologia de Franco, até se autonomizou no Vox e no velho Partido Popular. Em Portugal, foi diferente: a direita portuguesa não aceitou a herança do património político ideológico da ditadura. Tanto que até há pouco tempo não havia nenhum partido com representação parlamentar que fugisse a este consenso constitucional, e se com o Chega pode haver nostalgias sociais, só agora é que esse consenso poderá ter começado a romper-se." Em conclusão, diz: "Em Portugal, a diferença é que houve uma revolução e ela originou uma negação desse património político do salazarismo, que tem estado na base do nosso sistema político desde a aprovação da Constituição de 1976."
A investigação já referida de Fernando Rosas leva ao trocadilho seguinte, o de, além da arte de saber durar, Salazar ser capaz de perdurar ou a sua importância diluiu-se nos últimos anos? Responde: "O Estado Novo deixou marcas profundas na sociedade portuguesa, tanto no atraso económico como na repressão ao mundo cultural e não se perdeu a memória da violência política. Tudo isso é um peso grande e que perdura na recordação das pessoas." Exemplo disso é o dizer-se "que no tempo do Salazar é que era bom, esquecendo-se as pessoas de que nesse tempo grande parte dos que dizem isso não tinham acesso a escola ou, por exemplo, a cuidados de saúde". Mas, refere, "esse tipo de memórias difusas regressam sempre nos momentos de dificuldades económicas e sociais, quando as pessoas se veem apertadas e há uma tendência para modificar o passado".
O biógrafo de Salazar, Ribeiro de Meneses, afirma no início do seu livro que "ainda está por compreender Salazar 50 anos após a morte". Explica: "Não sei se saberemos mais um dia destes sobre Salazar do que sabemos hoje, pois nenhuma obra histórica ou biográfica é definitiva. Não sei bem o que mais poderemos encontrar para entender o seu raciocínio, os afetos e as frustrações de Salazar, mas existe espaço para interpretações diferentes dos elementos que temos. Grande parte da sua vida foi passada como chefe de governo e acho que um historiador com mais idade e sabedoria do que é a vida talvez faça uma melhor apreciação da evolução de Salazar, e é algo de que não desisti enquanto projeto. Quero voltar a considerar a carreira de Salazar, sobretudo a relutância e a recusa em abandonar o poder até mais não aguentar. Felizmente que hoje já não é usado como referencial, mas, quando alargamos os horizontes além dos governos e pensamos no papel de Portugal no mundo e na Europa, a relação dos portugueses com a autoridade, o poder e o Estado, aí sim detetam-se ainda influências e o legado de Salazar."