Embora falar de "cancel culture", então

O debate livre está "dia a dia mais constrangido", devido a uma vaga de "humilhação pública e ostracismo" vinda das chamadas forças progressistas, dizem 153 intelectuais, sobretudo anglófonos, de nomeada, usando a palavra "censura". Será?
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No verão passado estava num bar com uma amiga transexual e a dada altura fomos à casa de banho. Enquanto esperávamos por vez, um segurança entrou e agarrou no braço dela, para a tirar dali. Alguém, percebi depois, tinha ido fazer queixa de que estava um homem na casa de banho das mulheres. Perplexa - afinal, existe uma lei sobre identidade de género em Portugal -, agarrei na mão dela e disse ao segurança: "Está tudo bem, é uma rapariga." Ele olhou para mim e desistiu de a levar. Com os olhos cheios de lágrimas, a minha amiga comentou: "Já viste o que me ia acontecer se não fosse o teu privilégio?"

Este episódio ficou a remoer até hoje na minha cabeça. Pela dor dela e pela violência implícita naquele gesto do segurança - por mais delicado que tenha sido na abordagem, e foi -, mas não sobretudo. Sobre essa violência e suas consequências já tinha pensado antes, mesmo se é sempre mais chocante quando nos deparamos diretamente com ela. De algum modo nova, porém, foi a noção de privilégio objetificada no meu gesto de proteção. A ideia, ali tão clara, de que não, não somos iguais, e que estou, face a ela, num lugar de poder - poder que se no caso foi usado para "o bem" não deixa de ser uma humilhação. Porque significa que ela vale menos do que eu, a sua voz não é ouvida como a minha, que dependeu de mim para afirmar aquilo que só a ela compete: a sua identidade.

Não é fácil consciencializar que a despeito dos nossos sentimentos, das nossas ideias e intenções, fazemos parte de uma estrutura de poder. Até porque para a maioria das pessoas, aparentemente, "poder" é sinónimo de governo ou cargo político ou muito dinheiro; a ideia de que existem relações de poder historicamente codificadas na estrutura social e cultural, que essas relações nos precedem e transcendem e estão inscritas na linguagem, por exemplo, tem sido, como se sabe, objeto de enorme resistência - aquela que se tem erguido face ao que é denominado de "politicamente correto" e também ao que tem sido referido como "cancel culture", duas noções relacionadas entre si.

É sobre essa denominada "cultura de cancelamento", representada como associada à esquerda, a carta aberta surgida a 7 de julho no site da revista americana Harper com o título "Uma carta sobre a justiça e o debate livre". Assinada por 153 intelectuais, muitos deles vistos como de esquerda, e incluindo os escritores Salman Rushdie (o qual, recorde-se, foi alvo em 1989 de uma fatwa do então supremo líder do Irão, aiatola Khomeini, sentenciando-o à morte por causa de Os Versículos Satânicos), Margaret Atwood, J. K. Rowling e Martim Amis, a histórica feminista Gloria Steinem e o filósofo Noam Chomsky, adverte para aquilo que identifica como "restrição do debate, seja por um governo repressivo ou uma sociedade intolerante" e "o clima de intolerância que se instalou em todos os quadrantes", considerando que "a troca livre de informação e de ideias, sangue vital de uma sociedade liberal, está a ser mais constrangida a cada dia que passa".

A escolha da expressão "sangue vital" ganha uma tonalidade sarcástica se soubermos que a carta surge um mês após J.K. Rowling, autora de Harry Potter, ter sido acusado de transfobia na sequência de uma série de tuítes nos quais reagia à frase "pessoas que menstruam" (a qual refere o facto de haver homens transexuais que têm o período, assim como hermafroditas ou outras pessoas que não se identifiquem como mulheres), ironizando: "Estou certa de que existia uma palavra para isso, qual era?" Perante a maré de críticas, manteve a sua posição: "Conheço e amo pessoas trans, mas apagar o conceito de sexo impede que muitos possam falar das suas vidas. Não é ódio dizer a verdade."

Mais tarde, a escritora britânica publicou, a propósito, um texto no qual se manifesta preocupada com o "ativismo trans" e a ideia de espaços unissexo (como casas de banho). Vários dos atores dos filmes Harry Potter e comunidades de fãs da saga reagiram com desgosto às declarações da autora e na editora Hachette, onde o seu próximo livro está em preparação, um grupo de funcionários terá recusado trabalhar nele (em comunicado, a editora sublinhou que a liberdade de expressão é o fulcro da atividade editorial e que, se os funcionários não são obrigados a trabalhar num conteúdo que considerem perturbador por motivos pessoais, não podem recusá-lo por não concordarem com as ideias expressas pelo autor fora do projeto).

O caso de Rowling não é mencionado na carta, que dá vários exemplos, sem os referir em concreto, dos efeitos do constrangimento e censura a que se refere - editores despedidos por publicarem artigos controversos; jornalistas impedidos de escrever sobre certos tópicos; professores investigados por citarem determinadas obras. E a missiva, aliás curta, também não explica em que se baseia para falar de um "constrangimento crescente" dos discursos. Crescente em relação a quê? Havia mais liberdade há 30 anos, quando no espaço público só se podiam exprimir os escolhidos, quase todos homens, brancos, de meia-idade e classe média (o que aliás ainda é a regra)? Havia mais liberdade com uma muito menor diversidade de vozes? Havia mais debate quando eram sempre os mesmos a debater?

Cada caso é um caso, como aliás a carta diz e bem. Mas se analisarmos o de Rowling não vemos nada que se pareça com censura - a não ser que consideremos ser criticada duramente ou protestos, incluindo os ocorridos na Hachette, como "censura". É chato? É com certeza; só quem nunca foi alvo de uma maré de críticas duras, que quase sempre, no tempo do online, incluem insultos, não sabe o quão chato é. Mas o "debate livre" é isso mesmo, ou não? Por que raio haveria Rowling de poder exprimir as suas dúvidas sobre a identidade de género, tendo a obrigação de saber que ia magoar e indignar muita gente, sem sofrer críticas? E como raio passou por aquele grupo de 153 cabeças, muitas delas excelentíssimas, a ideia de comparar a repressão de governos autoritários - que, é preciso lembrar, prendem, não raro torturam e até chegam a matar - a qualquer maré de protestos discursivos, no Twitter ou noutro lado qualquer?

Há muito me confunde o tipo de raciocínio que combina uma defesa maximalista da liberdade de expressão com a aflição face às reações - também discursivas - de desagrado que certas expressões de liberdade ocasionam. E mais me confunde ainda que quem repita "palavras são só palavras, não são ações", se transtorne com tempestades tuiterianas (a última vez que vi, o Twitter é feito de palavras), protestos vocais ou mesmo apelos a boicote. Raios, isso não é tudo palavras? Tão palavras como dizer que uma mulher trans não é uma mulher, ou que só as mulheres menstruam, e que se menstrua é mulher - o que é afinal uma forma não particularmente subtil de boicotar vários grupos de pessoas, recusando-lhes o direito a definir a sua identidade e, decorrentemente, a, como a minha amiga, entrar numa casa de banho identificada com o género com que se identificam.

Assim, o que Rowling fez, do seu considerável lugar de poder, foi participar no "cancelamento" daqueles grupos de pessoas - grupos de pessoas historicamente perseguidas, anuladas, obliteradas, assassinadas. E o que esta carta faz, ao afirmar que há menos liberdade discursiva e de debate hoje, é fazer de conta que antes não havia grupos inteiros de pessoas "canceladas", sem direito a voz ou a sequer se autonomearem, e que esse cancelamento, derivado de estruturas relacionais de poder que se perpetuam, não continua a subsistir.

Para dar um exemplo que vai ao encontro das preocupações feministas de Rowling, basta atentar ao que sucede às mulheres no espaço público - à forma como são sistematicamente alvo de tentativas de intimidação, humilhação e silenciamento (ou seja, cancelamento) através da perpetração de violência, seja ela simbólica, discursiva ou física. Como explicou Alexandria Ocasio-Cortez de forma cristalina esta semana no Congresso dos EUA, essa é ainda hoje a realidade das mulheres, incluindo das que como ela ocupam "lugares de poder".

Que haja feministas a assinar uma carta na qual se certifica existir menor liberdade de debate porque os historicamente oprimidos e silenciados agora falam, se irritam e contra-atacam, disputando o poder, é mesmo muito deprimente.

Jornalista

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