Costa da Caparica e Cova do Vapor: o mar vai vencer a guerra e a catástrofe está iminente
O eixo entre a Cova do Vapor e a Fonte da Telha será o mais fustigado pelas alterações climáticas. Estudos apontam para a subida do mar de dois metros em 70 anos. Considerando as tempestades e as flutuações de marés, uma catástrofe na zona anuncia-se. E já há realojamentos anunciados.
O cenário traçado pelo Plano Metropolitano de Adaptação às Alterações Climáticas da Área Metropolitana de Lisboa (PMAAC-AML) concluiu que Almada será o primeiro concelho a ser fustigado na sequência das alterações climáticas e que sofrerá graves prejuízos. Segundo o plano metropolitano, além da subida da água, estão previstos eventos extremos, como tempestades e ventos fortes, efeitos que deverão ter um forte impacte em infraestruturas e na segurança das pessoas e bens. E fevereiro, mês em que historicamente ocorrem mais tempestades, está quase aí.
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Os galgamentos e inundações nesta extensa zona costeira, com 16 quilómetros de litoral oceânico e 28 quilómetros de litoral no estuário do Tejo, são apontados como a ameaça principal, que exige respostas imediatas e a sensibilização das comunidades para a possibilidade de terem de recuar. Querendo isto dizer que a ocupação humana daquela zona de costa, em construções e infraestruturas, tem de passar para uma área mais interior. Os casos mais críticos são o bairro do Segundo Torrão, a Cova do Vapor - povoado que deverá ficar totalmente submerso - e, mais a sul, a Fonte da Telha. Os parques de campismo também terão de ser deslocalizados.
Há zonas já altamente erodidas, mas que estão habitadas. No plano da AML foram identificadas várias áreas que vão sofrer mais intensamente o impacto das alterações climáticas, com a subida de dois metros do nível de água nos próximos 70 anos
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Ao longo dos anos têm existido medidas de mitigação, como a construção de paredões e esporões, a alimentação artificial das praias e tentativas de renaturalizar os sistemas naturais, mas as construções ilegais não param de crescer. Assistiu-se ainda a um esforço de ordenamento com o programa Polis da Costa da Caparica, mas a pressão urbanística, muita dela ilegal, é cada vez maior. O mais recente Plano de Ordenamento da Orla Costeira (POOC) dá orientações para o recuo de habitações, frentes de praia e parques de campismo, mas a inoperância salta à vista.

Na linha da frente do Segundo Torrão a água já chegou quase a alcançar os telhados.
© SG
José Carlos Ferreira, professor da FCT-Nova e especialista em erosão costeira, alerta que "a pior fase de galgamentos e inundações vai ser observada já em fevereiro, período invernoso, com agitação marítima, aliado aos picos das marés". Historicamente, enfatiza, este é o mês em que ocorrem mais tempestades.
Fevereiro, historicamente o mês mais crítico
As alimentações artificiais das praias e o reforço dos paredões são operações pouco compreendidas pelas populações, prossegue, "porque a tendência é de a areia migrar para o mar e o resultado dos enchimentos no final do verão só começa a ser visível a partir de maio e junho do ano seguinte, quando o mar repõe alguma areia na praia". Para o técnico, é preciso sensibilizar a população para o facto de que sem enchimentos haverá galgamentos graves. Por outro lado, salienta, "estas ações podem causar uma ideia errada de segurança. As pessoas precisam de saber que estas medidas reduzem a vulnerabilidade, mas não a anulam. E, a longo prazo, serão ineficientes face à subida do nível do mar".
"Ao colocar areia nas praias e reforçando os paredões, não estamos a eliminar os riscos para as populações, até porque as estatísticas mostram que as tempestades vão ser cada vez mais fortes. A Costa da Caparica é uma planície baixa e arenosa, é uma cidade erguida abaixo do nível médio do mar, muito vulnerável a episódios extremos. Se fosse eu a decidir, começaria a pensar, a médio prazo, num cenário de relocalização em toda a frente urbana da Caparica", observou José Carlos Ferreira.
O litoral português está sujeito a várias jurisdições, com pouca coordenação, e muitas entidades envolvidas para poucos técnicos e uma grande área territorial em risco
O especialista apontou ainda a necessidade de apostar em comportamentos de precaução, sobretudo nas zonas mais problemáticas, como o Bairro do Segundo Torrão e Cova do Vapor. E, mais a sul do eixo, na Fonte da Telha. "É imprescindível não intensificar ainda mais a ocupação do litoral".
Na sequência do cenário traçado pelo Plano Metropolitano de Adaptação às Alterações Climáticas da Área Metropolitana de Lisboa, aconselha que se proceda à retirada das comunidades e seus bens das zonas mais críticas, com especial urgência no Bairro do Segundo Torrão, Cova do Vapor e parque de campismo do CCL. A mesma recomendação é válida para a Fonte da Telha, com exceção da comunidade piscatória, que será recuada brevemente - os pescadores e seus descendentes já foram identificados.
Há zonas já altamente erodidas, mas que estão habitadas. No plano da AML foram identificadas várias áreas que vão sofrer mais intensamente o impacto das alterações climáticas, com a subida de dois metros do nível de água nos próximos 70 anos. "Podemos estar na iminência de uma catástrofe certa, caso se conjugue a subida das águas (consequência do degelo), com tempestades, ventos e marés cheias. Todo o fenómeno de risco será ampliado", continua.
População quer ficar na Trafaria
De acordo com o especialista, o programa para a orla costeira tem orientações muito claras: retirar as populações em risco e renaturalizar os sistemas naturais. "Mas as construções ilegais têm continuado a crescer desmesuradamente, em resultado de uma má gestão territorial. O litoral, sobretudo o domínio público hídrico, é uma espécie de terra de ninguém", acrescenta.
Na Cova do Vapor, há 30 anos, as casas eram todas de veraneio, móveis, de madeira. "Atualmente são fixas. E ilegais. À semelhança do que se verifica na Fonte da Telha. Mas as pessoas continuam a construir, porque estão à espera da inoperância do Estado. Sabem que a justiça é muito lenta, e que o crime compensa. Por isso, prevaricam. É isso que observo na Cova do Vapor e na Fonte da Telha. A população sabe que está ali ilegalmente, mas está organizada - muitos têm até advogados, na expectativa de que o Estado não aja e que um dia as construções passem a definitivas. Estamos a braços com questões morais e ilegais", acrescenta, contextualizando que "o litoral português está sujeito a muitas jurisdições, com pouca coordenação, e muitas entidades envolvidas para poucos técnicos e uma grande área territorial em risco".
A par disso, ressalta que a gestão do risco no litoral português "tem sido feita de forma reativa e não planeada, embora a situação esteja a melhorar gradualmente. Só quando há tempestades é que há um investimento. É urgente começar a fazer gestão de planeamento".
Perto da praia de São João e com vista para Lisboa, o Segundo Torrão, na freguesia da Trafaria, é um bairro clandestino onde mais de três mil pessoas vivem em condições precárias. No verão, conforme os fluxos migratórios, chegam a ser cinco mil. Paulo Silva, presidente da associação de moradores, reside ali há mais de 30 anos. Casou-se e viu os seus filhos nascerem neste bairro.
Enquanto aguardava a chegada de material para as obras de ampliação da cozinha comunitária, explica que a população sabe que corre riscos; já por várias vezes viram a água entrar nas suas casas. Mas a hipótese de realojamento não é bem-vinda por todos. O bairro nasceu há 70 anos, pela mão de pescadores. Na década de 90, começaram a chegar várias comunidades africanas.
"Vivem todos em comunidade, e há espírito de vizinhança e bairrismo. Reconhecem que as condições são precárias, mas têm assistido a melhorias, como a abertura de fossas sépticas, a distribuição de eletricidade, a construção de uma capela e de um centro com uma cozinha comunitária." Numa fase posterior, serão erguidos na área contígua ao centro comunitário dois espaços destinados à prestação de cuidados de saúde. Mas são apenas medidas para mitigar a precariedade daqueles que ali vivem.
"Se nos tirarem daqui, recoloquem-nos na Trafaria", diz Paulo Silva
A autarquia já informou a comunidade da inevitabilidade de proceder a demolições. Só não se sabe é quando. Certo é que já foi assinado um protocolo para a construção de 3000 fogos no Monte da Caparica, que servirão para realojar os moradores. Mas a maioria chegou àquele bairro ainda criança. Casaram-se e tiveram filhos ali. Permanecer no Segundo Torrão é, para muitos, a forma de garantir melhor qualidade de vida aos filhos, uma vez que não têm de pagar renda.

Paulo Silva (esq.) e Fernando Agostinho, presidente da mesa da assembleia-geral, aguardam a chegada de materiais para começar a ampliar a cozinha comunitária.
© SG
Os moradores partilham com Paulo Silva os seus receios. "Têm aqui a sua rede de amizades. Sabem que viver neste bairro para sempre poderá não ser a solução, mas, a terem de mudar, gostavam de permanecer na Trafaria. E o que está em cima da mesa é serem colocados num bairro social no Monte da Caparica. Os que aqui vivem têm medo de perder a sua identidade e proximidade com os vizinhos. Todos têm ligações a esta terra, ao mar, ao bairro, portanto seria muito importante que mantivessem as suas raízes, o sentimento de vizinhança. Sair daqui para um prédio implica uma nova comunidade, implica afastamento, perda de identidade", constata o presidente da associação.
Numa perspetiva mais otimista, José Carlos Ferreira observa que as autoridades estão paulatinamente a começar a pensar numa estratégia eficiente para o risco de erosão costeira, "e sabem que precisam do conhecimento dos académicos". Exemplo disso foi a formalização da criação de um observatório e de um centro de estudos de avaliação de riscos costeiros, que deverá estar concluído em 2020.
Início da luta às alterações climáticas
Apresentado em dezembro de 2019, o Observatório de Avaliação de Riscos Costeiros resulta de uma parceria entre a Câmara Municipal de Almada, a Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade Nova de Lisboa (FCT-Nova) e o Laboratório Nacional de Engenharia Civil (LNEC). "Com este observatório, a gestão do risco vai passar dos mais de mil estudos já realizados à ação. É uma iniciativa muito importante, uma vez que vai permitir criar modelos de adaptação ao que aí vem. Vamos usar a informação recolhida para avaliar os riscos, mas também para estudar estratégias que possam ser adotadas para prevenir e reduzir o perigo", refere José Carlos Ferreira.
O trabalho realizado pelo novo observatório deverá resultar num conjunto de projetos a serem desenvolvidos no âmbito de candidaturas a fundos de investigação nacionais e europeus.