6 de fevereiro de 1973: princípios e coragem

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Talvez o nome de Miller Guerra não seja hoje tão conhecido como os de Sá Carneiro e de Pinto Balsemão, dois membros da "ala liberal" que em democracia chegaram a primeiro-ministro. Mas todo o seu percurso, relembrado este domingo de aniversário do 25 de Abril pela biógrafa Ana Paula Pires numa entrevista ao DN, revela um homem de princípios e de coragem, qualidades que eram a regra no pequeno grupo de personalidades que já na fase marcelista do Estado Novo acreditaram ser possível mudar o regime a partir de dentro, mas que se sentiram enganadas. A maioria bateu com a porta.

Sá Carneiro, que viria a ser um dos fundadores do PSD nos dias logo a seguir ao 25 de Abril, a revolução libertadora da qual celebramos já 47 anos, foi o primeiro a sair, logo no início de 1973, percebendo que nem na Assembleia Nacional havia o mínimo espaço para críticas, e isto apesar das promessas de abertura feitas por Marcello Caetano quando substituiu, em 1968, Salazar na Presidência do Conselho de Ministros. Desde 1970, dois anos depois da queda que o deixou incapacitado, o fundador do Estado Novo estava morto, mas o regime que criara continuava vivo, ou a tentar sobreviver, avesso a quaisquer mudanças, com a pequena exceção das cosméticas, como o nome do partido único ou a designação da polícia política.

Foi graças ao Movimento das Forças Armadas, a esses capitães que perceberam que a guerra de África não tinha solução militar, que o regime caiu finalmente. Mas ao longo de quase cinco décadas muitos foram aqueles que enfrentaram o salazarismo e o seu ocaso, esse marcelismo famoso pela efémera promessa de primavera. Anarquistas, republicanos, operários, militares, socialistas, católicos, comunistas, estes últimos com uma dose especialmente forte de sofrimento, fruto de serem os mais organizados, os mais eficazes na luta, e também de estarem nos antípodas ideológicos da ditadura, com raízes no 28 de Maio de 1926.

Junte-se nesta homenagem a quem ajudou a fazer um país melhor também os deputados "liberais". É impossível não pensar como o regime terá ficado abalado quando uma figura do peso intelectual do transmontano Miller Guerra, médico formado em Coimbra, assistente de Egas Moniz, bastonário da Ordem dos Médicos, bateu também com a porta, e com um fortíssimo estrondo.

Chegou depois a ser hipótese para primeiro-ministro no pós-revolucão, esteve para ser um dos fundadores do PSD, contribuiu como deputado socialista para a discussão e aprovação da Constituição de 1976 e foi um defensor acérrimo da criação do Serviço Nacional de Saúde. Mas se há momento que define um homem com agá maiúsculo foi aquele dia do tal bater de porta com toda a força, a 6 de fevereiro de 1973. Fica aqui a descrição do que se passou, sintetizado pela historiadora Ana Paula Pires, que, tal como metade dos portugueses, nasceu já em democracia: "Miller Guerra renunciou ao cargo de deputado em plena sessão, proferindo um dos discursos mais violentos a que a Assembleia Nacional assistiu durante 40 anos de Estado Novo." Sim, em pleno Parlamento. Marcello engoliu em seco, Salazar deve ter dado voltas no túmulo.

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