O dia que fez o meu pai voltar da guerra e deu um país melhor aos meus filhos
Faço parte dos portugueses que nasceram antes do 25 de Abril, hoje menos de metade da população, mesmo que só tivesse dois anos e meio no momento da Revolução. Não tenho memórias daquele dia, mas sei o quanto foi importante para mim: primeiro que tudo, permitiu que o meu pai voltasse para casa, ele que dois anos antes tinha sido mandado para Moçambique combater; depois, permitiu que o meu país se tornasse melhor, não só livre como moderno, sem império mas mais próspero, com o contributo também de quem perdeu tudo na descolonização tardia e teve de refazer a vida. Temos todos a agradecer à Revolução de 1974, por exemplo, este Serviço Nacional de Saúde que tão dignamente tem-se comportado durante a atual pandemia, garantindo que um doente - incluindo os estrangeiros que escolheram viver entre nós - quando entra no hospital não tenha de se preocupar com o plafond do cartão de crédito, só em ser curado.
Trabalho num jornal que já era bem antigo quando os Capitães de Abril, cansados da tal guerra do ultramar em que o meu pai e quase um milhão de outros jovens participaram, decidiram mudar o regime. E nesse dia, faz agora 46 anos, tivemos uma segunda edição que é por si só um documento sobre o país - enquanto nas primeiras páginas se noticiava o movimento militar, lá dentro continuavam os vestígios da edição normal, com as inaugurações de Américo Thomaz e os discursos de Marcello Caetano. Eram páginas fechadas antes de se ouvir na rádio Grândola, Vila Morena, a senha do MFA que foi passada no programa Limite, da Renascença, por Carlos Albino, de quem mais tarde fui camarada aqui no DN.
Não escondo que o nosso jornal, fundado em 1864, foi dos mais vigiados pelo salazarismo e depois pelo marcelismo, talvez por logo a seguir ao golpe militar de 1926 ter-se destacado nas críticas à imposição da censura pelos dirigentes do futuro Estado Novo. Tudo isto faz parte da história do DN, tal como da história do país, e não deve ser renegado. Também no PREC houve projetos ideológicos que tentaram impor-se no jornal, com José Saramago a liderá-los, e não foi por isso que, recém-Nobel da Literatura, o escritor deixou de ser recebido com uma salva de palmas quando voltou em outubro de 1998 como visitante à redação onde trabalhara, ainda no edifício histórico na Avenida da Liberdade, coração de Lisboa.
Olhemos agora para o futuro, que se apresenta cheio de desafios por causa desta dupla crise sanitária e económica. Por ocasião dos 40 anos do 25 de Abril, o DN fez uma exaustiva análise de como era o país antes e depois, e a conclusão foi a de uma impressionante melhoria a todos os níveis, com destaque para a saúde e a educação. E, no entanto, nesse 2014 até estávamos ainda sob assistência financeira, faltavam alguns meses para a saída da troika de cá. O que significa que devemos ser otimistas, pois desde 1974 têm sido construídas bases sólidas para o desenvolvimento, e a prova é a resposta dos nossos hospitais à covid-19, admirável tal como admirável, é reconhecido lá fora, tem sido a gestão política da situação (e tanto estão de parabéns o governo como a oposição) e o comportamento cívico da população. Mesmo o estado de emergência foi gerido para nunca parecer estar a pôr em causa esta democracia que hoje festejamos. E felizmente a União Europeia está também a mostrar vontade de reação à crise e a dar valor à ideia de união.
Tenho dois filhos que gostam de história. Desde pequenos sempre lhes falei com entusiasmo da história de Portugal, de como os descobrimentos deram ao país uma projeção única que sobrevive hoje através dos quase 300 milhões de falantes de português. Sempre acharam curioso que quando o pai nasceu ainda houvesse um império e que os avôs tivessem sido soldados a milhares de quilómetros de casa. Mas, sobretudo, expliquei-lhes a sorte que tinham tido com a época em que nasceram e que a liberdade e as oportunidades de que desfrutam devem-se muito aos que naquela madrugada de 25 de abril de 1974 saíram dos quartéis para acabar com a ditadura.
Também lhes digo que a profissão do pai, como todas, é digna. E, além disso, essencial para a defesa da democracia em que gostamos de viver e que não é um dado adquirido em muitas partes do mundo. Muitos leitores partilham dessa minha convicção e agradeço que tenham vindo a subscrever assinaturas do jornal. Na minha qualidade de diretor interino, também agradeço aqui os esforços do Estado e da sociedade civil em defesa do jornalismo, de que são exemplos, como foi noticiado, a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa e a Fidelidade, que subscreveram milhares de assinaturas de vários jornais, incluindo o DN. Humildemente, nos nossos quase 156 anos, destacamos que uma e outra são ainda mais velhas do que nós, o que diz muito delas: a Santa Casa foi fundada em 1498, a companhia de seguros Fidelidade em 1808. Solidariedade das antigas.